sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Economia escrita com poesia. Brilhante artigo.

Mauro Santayana, no Jornal do Brasil, via Conversa Afiada

Os defensores da plena autonomia do Banco Central consideraram um erro a redução da taxa Selic, de meio ponto percentual, para 12% ao ano — ainda assim, a mais alta entre as economias industrializadas.

Sempre que isso ocorre, os mesmos interesses se erguem, na defesa dos rentistas. Como as moedas não copulam, nem partejam, quem paga os juros é o trabalho, que produz a mais valia obtida pelo capital.

Desculpem se a expressão é marxista, mas qualquer um que pense um pouco não precisa de Marx e seus textos contestados pelo fundamentalismo mercantil, para chegar à verdade.

Como trabalho se entenda também a administração das empresas produtivas, seja diretamente pelos acionistas ou gerentes contratados.

Mas o rentista clássico, que vive longe das máquinas ou, que, como banqueiro, manipula o dinheiro alheio — e leva à angústia e ao desespero os devedores, os estados à falência, como está ocorrendo agora, com o desemprego e a violência — sua atividade não pode ser vista como produtiva, por mais se esforcem os seus porta-vozes, ao expor os argumentos de uma pseudo-filosofia econômica.

Esse “senhorio” da moeda, em nome de falsa racionalidade técnica, que está sempre a serviço do capital, e não das pessoas, tem sido responsável pelas grandes crises do capitalismo moderno, como a História demonstra.

O Banco Central — e os lugares comuns têm a sua força — vem sendo, no Brasil, mais do que em outros países, a central dos bancos.

Ora, seus diretores, por mais geniais sejam, não dispõem de legitimidade política para cuidar da moeda, que é o símbolo mais forte da soberania nacional.

A moeda representa os bens da comunidade, acumulados com o trabalho de gerações sucessivas.

Para que assegure seu valor real, ela deve ser emitida por quem tenha a legitimidade política para fazê-lo: os eventuais governantes do Estado, como detentores da vontade nacional.

Sem voto, nos estados democráticos como se identifica o nosso, não há poder legítimo.

De duas, uma: ou o Banco Central se submete às decisões políticas do governo nacional, ou se estará sobrepondo ao poder dos eleitos para conduzir o Estado, e, assim, colocando-se acima da soberania do povo.

A quem interessa manter os juros altos? Há um axioma, que nunca se respeitou no Brasil, de que a taxa de juros não pode superar a taxa de crescimento do PIB.

O raciocínio, empírico, é irretorquível: uma sociedade não pode pagar mais de juros do que o que ela obtém com o seu trabalho.

A tradução de um leigo, como o colunista, é simples: trata-se de uma extorsão cometida pelo sistema financeiro contra os que trabalham e produzem.

É mais do que uma transferência de recursos, é uma usurpação do poder real sobre a sociedade.

Isso explica a dívida pública acumulada como confisco de parcela dos resultados do trabalho dos brasileiros.

É um mistério que o país continue crescendo dentro desse sistema.

Talvez ele se explique se considerarmos as estatísticas uma ficção.

É provável, portanto, que o nosso PIB real seja maior do que o IBGE constata no exame do comportamento da economia.

Se assim for, que viva a informalidade, menos sujeita à expropriação dos bancos e aos instrumentos de aferição oficial.

A economia não é, como dizem os que a conhecem melhor, ciência exata.

Deveria ser ciência moral, mas não é, a não ser que ouçamos alguns santos, que dela trataram, como Santo Antonino de Florença, do século XV, autor do clássico de teologia “Summa Moralis” e feroz combatente contra a usura.

Os economistas, de modo geral (menos, é claro, os mais competentes) costumam fazer de seu ofício uma espécie de culto esotérico, com confusas fórmulas algébricas e aleijões lógicos.

Como recomendava Lord Keynes, eles deveriam encarar o seu trabalho com a mesma modéstia com que os dentistas encaram o seu.

O certo é que todas as aplicações da inteligência, ou todos os saberes, se assim entendemos as ciências, se encontram a serviço das relações de poder.

Isso faz com que a economia volte à sua denominação clássica, da qual seus profissionais de hoje buscam fugir: economia política.

Fora da política, que trata do poder, não há economia, nem há coisa alguma.

O Banco Central, como administrador da moeda, deve sim, submeter-se à legitimidade do poder político.

Para lembrar um empresário e homem público brasileiro, que nos deixou recentemente — José Alencar — a taxa de juros cobrada no Brasil (e cobrada sobretudo do Estado, com a cumplicidade de alguns de seus servidores) é um assalto.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PENSÃO ALIMENTÍCIA: HORA DE REPENSAR.

JÁ PASSOU DA HORA


A prisão de um jogador de futebol, na semana passada, por fata de pagamento de pensão alimentícia, e no caso, conforme ressaltou a imprensa, com um débito próximo a um milhão de reais, põe a sociedade de frente a uma questão seríssima que aparentemente nunca foi levada realmente a sério.


Conceitualmente, etimologicamente, e segundo a própria definição do código civil, a pensão alimentícia tem a finalidade de garantir as mínimas condições de vida para uma pessoa humana incapaz de sustentar-se, e que pode ser demandado por qualquer pessoa nesta condição a seus familiares mais próximos. Mais comummente, é o que ocorre entre filhos e os genitores, quando estes últimos estão separados por qualquer motivo.


O que temos visto, entretanto, e o caso do jogador é um ótimo exemplo, é que os valores das pensões tem sido pautados muito mais pela “capacidade financeira” do pensionante do que pela verdadeira necessidade do pensionado, invertendo o significado moral do binômio necessidade / possibilidade. Originalmente, entendo claramente que o bem absoluto é a necessidade, que pode ser sempre calculado com uma boa dose de objetividade, sendo a possibilidade o parâmetro relativizante. Ora, a necessidade envolve um rol de bens e serviços essenciais à nutrição, vestimenta, educação, moradia, atividades sociais, entre outros, que deve ter como balizador a condição média das pessoas de mesma idade que convivem naquele grupo social em que se insere o pensionado.


Neste ponto, pergunta-se de imediato: A que finalidade atende um valor de pensão que ultrapassa enormemente as condições médias do meio onde vive o pensionado? A que finalidade presta-se a transferência financeira de um vultoso recurso a quem jamais teve a capacidade de produzi-lo ou mesmo de gerenciá-lo? No caso específico, o jogador de futebol passou por um tempo de “vacas gordas” que levou-o a pensionar seu(s) filhos, 2, se bem me lembro, com um valor de dezenas de milhares de reais. Passa o tempo, e o jogador se vê em condição financeira pior, sem condições de manter o pagamento, e termina preso com o absurdo débito impagável. Alguém poderia asseverar de imediato que a ação revisional de alimentos presta-se a isso. Pois bem, conheço um caso onde uma ação revisional onde a parte oposta obteve justiça gratuita, e utilizando-se de todos os recursos jurídicos possíveis protelou a ação por mais de 5 anos, o que arruinou definitivamente a situação do pensionante, que já era processado por um retroativo, e ainda que tendo sido vencedor na revisional não pode ver reconhecidos e compensados os valores que pagou em excesso por tantos anos.


Mais do que isto, valores elevados de pensão servem como verdadeiro estímulo à acomodação da parte oposta na situação não produtiva ou não laborativa, favorecendo claramente que use os proventos em benefício próprio, grandemente dissociado do benefício estrito do pensionado. E para piorar, a parte oposta se vê compelida a gastar tudo o que recebe, pois qualquer indício de acúmulo financeiro, poupança ou patrimônio pode servir como pretexto ao pensionante para uma revisional.


Não são estes os únicos casos, e provavelmente cada um dos(as) leitores(as) deve ter conhecimento direto ou indireto de casos semelhantes.


O fato importante é que a regulamentação sobre o tema e o posicionamento do judiciário aparentemente ultrapassam até as fronteiras do que conhecemos por “letra fria da lei”, metáfora que jamais deveria tomar forma concreta em nenhum contexto, dado que a lei tem finalidade, e esta, por sua vez, substrato moral. Assim, fica o resultado operacional deste sistema muito distante de seu objetivo primário, sem prejuízo de outros efeitos colaterais e adversos que aprofundam os desgastes que em nada interessam ao pensionado, especialmente quando criança e adolescente.


Penso, concluindo, que a atual realidade deste tema está longe de contemplar soluções racionais para esta delicada questão, e que a sociedade vem mostrando uma certa preguiça de debruçar-se e produzir algo mais próximo do desejável, além de mostrar pudores muito estreitos quando adere à “espetaculocracia” protagonizada pela mídia e pelos coloquiais bate-papos de botequim.


O desenvolvimento e a educação dos seres humanos, em especial, das crianças e adolescentes, merece um pouco mais do que isso.


NELSON NISENBAUM



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

HIPOGLICEMIANTE TOMAVA A SUA AVÓ!

Eu era criança quando pela primeira vez ouvi o nome "Diabinese". Meu avô Luiz tomava diariamente o medicamento. A substância, a clorpropamida, "bombava" na época. Baixava mesmo a glicemia, mas com frequência, muito além do que deveria. Não me lembro de tê-lo visto com hipoglicemia, mas muitos anos mais tarde, já na faculdade de medicina, tive aquelas aterrorizantes aulas sobre diabetes. Se você tratasse com muito rigor, o doente entrava em coma hipoglicêmico. Se não tratasse com o suficiente rigor, mais tarde ele teria retinopatia diabética e ficaria cego. Teria pés e pernas amputadas, se sobrevivesse aos infartos do miocárdio. Ou, sofreria com a insuficiência renal e tantas outras agruras. Não sabíamos o que era ou o que significava exatamente a resistência à insulina. E, a então moderníssima glibenclamida (conhecida nos EUA como gliburide) sob o mágico nome de "Daonil" prometia uma ação um pouco mais suave que o Diabinese com menor risco de hipoglicemia. Só menor, o risco era líquido e certo. A fenformina, precursora da metformina era muito pouco popular, e nem tive aula sobre ela. Mal sabíamos o mecanismo de ação dessas drogas.

Sem grandes progressos em perspectiva, ainda assim os diabéticos diagnosticados entre 1965 a 1980 vivem ou viveram em média 15 anos a mais que os diagnosticados entre 1950 e 1964, apontam estudos publicados no último congresso americano de diabetes. É muita coisa, e considerando-se que nas respectivas épocas o que se tinha como arma eram os hipoglicemiantes, muita reflexão deve ser feita sobre a importância do controle glicêmico. Mas o banho de água gelada veio com o UKPDS, que consagrou a máxima (que este autor contesta atualmente) de que a doença evolui inexoravelmente à piora e à insulinodependência.

Ao final da década de 90 aquele mesmo estudo, consagrava a metformina como ferramenta medicamentosa segura e eficaz na redução dos danos e mortes pela doença. Quase concomitantemente, as glitazonas mostravam sua força, com diferentes mecanismos de ação em relação à metformina, mas com um alvo comum, a resistência à insulina, àquela época já reconhecida como fundamento da doença no tipo adulto. Naquela mesma esquina da história, as glinidas (repaglinida e nateglinida) buscavam seu espaço como o que seria a "insulina rápida" por via oral, a serem utilizadas às refeições. Menção honrosa à acarbose, com seu efeito retardador de aborção de carboidratos.

Alguns anos mais à frente, surgem as gliptinas, com sua capacidade de reduzir a secreção de glucagon e estimular a secreção de insulina de um modo glicose-dependente, além de diversos efeitos extra-glicêmicos.

Durante quase uma década, este autor frequentou numerosos cursos, simpósios e debates, e concluiu que o problema da resistência à insulina estava sub-tratado. A maioria dos estudos e casuísticas utilizava-se de uma única ferramenta, na maioria a metformina, e na minoria, uma glitazona. No último congresso do ADA, surgiram diversos estudos com a conjugação metformina-pioglitazona, mostrando desfechos melhores do que os anteriores. Houve ainda estudos envolvendo metformina-pioglitazona-gliptina, com desfechos ainda superiores. E é neste ponto que quero chegar: Temos hoje um esquema de tratamento que envolve dois sensibilizadores de insulina (quase uma ofensa esta simplificação de seu mais que complexo mecanismo de ação) e uma nova classe que reduz fortemente a glicogênese hepática além de "civilizar" as combalidas ou não células beta (produtoras de insulina). Venho tendo excelentes resultados com este esquema terapêutico que utilizo desde o lançamento das gliptinas há 3 anos, sendo claríssimo, pelos resultados laboratoriais dos pacientes, que atingem-se metas de HBA1C melhores do que as recomendadas sem uma única ocorrência de hipoglicemia. Claro que isto envolve custo, mas nos últimos 11 anos, ao contrário do que afirmava o UKPDS, nenhum dos meus pacientes evoluiu para insulinodependência, havendo casos, onde com a adição da gliptina, o "hipoglicemiante" pode ser abandonado.

Deve-se sempre ressaltar que minhas experiências não tem valor científico, e refletem tão somente a realidade dos meus pacientes e a minha. Entretanto, felizmente, a ciência não deixou de confirmar os achados deste pequeno universo.

Mas, destes tantos anos que milito na área do diabetes, posso ousar e antecipar este aforisma: Hipoglicemiante tomava a sua avó (e o meu avô). Agora, a doença tem tratamento. Proponho o termo "euglicemiante" para a estratégia terapêutica voltada à normalização da glicemia e da excursão glicêmica.

Declaro a inexistência de conflitos de interesse.

NELSON NISENBAUM
Especialista em Clínica Médica
Gerente de Auditoria em Saúde na Sec.Saúde de S.Bernardo do Campo/SP

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

OS ASSALTANTES DA CONSCIÊNCIA

Os assaltantes da consciência
Jornal do Brasil
Mauro Santayana

http://www.jb.com.br/coisas-da-politica/noticias/2011/07/29/os-assaltantes-da-consciencia/

Muitos cometemos o engano de atribuir a Goebbels a ideia da manipulação das massas pela propaganda política. Antes que o ministro de Hitler cunhasse expressões fortes, como Deutschland, erwacht!, Edward Bernays começava a construir a sua excitante teoria sobre o tema.

Bernays, nascido em Viena, trazia a forte influência de Freud: era seu duplo sobrinho. Sua mãe foi irmã do pai da psicanálise, e seu pai, irmão da mulher do grande cientista. Na realidade, Bernays teve poucas relações pessoais com o tio. Com um ano de idade transferiu-se de Viena para Nova York, acompanhando seus pais judeus. Depois de ter feito um curso de agronomia, dedicou-se muito cedo a uma profissão que inventou, a de Relações Públicas, expressão que considerava mais apropriada do que “propaganda”.

Combinando os estudos do tio sobre a mente e os estudos de Gustave Le Bon e outros, sobre a psicologia das massas, Bernays desenvolveu sua teoria sobre a necessidade de manipular as massas, na sociedade industrial que florescia nos Estados Unidos e no mundo. O texto que se segue é ilustrativo de sua conclusão:

“A consciente e inteligente manipulação dos hábitos e das opiniões das massas é um importante elemento na sociedade democrática. Os que manipulam esse mecanismo oculto da sociedade constituem um governo invisível, o verdadeiro poder dirigente de nosso país. Nós somos governados, nossas mentes são moldadas, nossos gostos formados, nossas ideias sugeridas amplamente por homens dos quais nunca ouvimos falar. Este é o resultado lógico de como a nossa “sociedade democrática” é organizada. Vasto número de seres humanos deve cooperar, desta maneira acomodada, se eles têm que conviver em sociedade. Em quase todos os atos de nossa vida diária, seja na esfera política ou nos negócios, em nossa conduta social ou em nosso pensamento ético, somos dominados por um relativamente pequeno número de pessoas. Elas entendem os processos mentais e os modelos das massas. E são essas pessoas que puxam os cordões com os quais controlam a mente pública”.

Bernays entendeu que essa manipulação só é possível mediante os meios de comunicação. Ao abrir a primeira agência de comunicação em Nova York, em 1913 – aos 22 anos – ele tratou de convencer os homens de negócios que o controle do mercado e o prestígio das empresas estavam “nas notícias”, e não nos anúncios. Foi assim que inventou o famoso press release. Coube-lhe também criar “eventos”, que se tornariam notícias. Patrocinou uma parada em Nova York na qual, pela primeira vez, mulheres eram vistas fumando. Contratou dezenas de jovens bonitas, que desfilaram com suas longas piteiras – e abriu o mercado do cigarro para o consumo feminino. Dele também foi a ideia de que, no cinema, o cigarro tivesse, como teve, presença permanente – e criou a “merchandising”. É provável que ele mesmo nunca tenha fumado – morreu aos 103 anos, em 1995.

A prevalência dos interesses comerciais nos jornais e, em seguida, nos meios eletrônicos, tornou-se comum, depois de Bernays, que se dedicou também à propaganda política. Foi consultor de Woodrow Wilson, na Primeira Guerra Mundial, e de Roosevelt, durante o “New Deal”. É difícil que Goebbels não tivesse conhecido seus trabalhos.
“A técnica de manipulação das massas é simples, sobretudo quando são conhecidos os mecanismos da mente”

A técnica de manipulação das massas é simples, sobretudo quando se conhecem os mecanismos da mente, os famosos instintos de manada, aos quais também ele e outros teóricos se referem. O “instinto de manada” foi manipulado magistralmente pelos nazistas e, também ali, a serviço do capitalismo. Krupp e Schacht tiveram tanta importância quanto Hitler. Mas, se sem Hitler poderia ter havido o nazismo, o sistema seria impensável sem Goebbels. E Goebbels, ao que tudo indica, valeu-se de Bernays, Le Bon e outros da mesma época e de ideias similares.

A propósito do “instinto de manada” vale a pena lembrar a definição do fascismo por Ortega y Gasset: um rebanho de ovelhas acovardadas, juntas umas às outras pelo com pelo, vigiadas por cães e submissas ao cajado do pastor. Essa manipulação das massas é o mais forte instrumento de dominação dos povos pelas oligarquias financeiras. Ela anestesia as pessoas — mediante a alienação — ao invadir a mente de cada uma delas, com os produtos tóxicos do entretenimento dirigido e das comunicações deformadas. É o que ocorre, com a demonização dos imigrantes “extracomunitários” nos países europeus, mas, sobretudo, dos procedentes dos países islâmicos. Acossados pela crise econômica, nada melhor do que encontrar um “bode expiatório” — como foram os judeus para Hitler, depois da derrota na Primeira Guerra — e, desesperadamente, organizar nova cruzada para a definitiva conquista da energia que se encontra sob as areias do Oriente Médio. Se essa conquista se fizer, há outras no horizonte, como a dos metais dos Andes e dos imensos recursos amazônicos. Não nos esqueçamos da “missão divina” de que se atribuía Bush para a invasão do Iraque — aprovada com entusiasmo pelo Congresso.

É preciso envenenar a mente dos homens, como envenenada foi a inteligência do assassino de Oslo — e desmoralizar, tanto quanto possível, as instituições do Estado Democrático — sempre a serviço dos donos do dinheiro. Quem conhece os jornais e as emissoras de televisão de Murdoch sabe que não há melhor exemplo de prática das ideias de Bernays e Goebbels do que a sua imensa empresa.

São esses mesmos instrumentos manipuladores que construíram o Partido Republicano americano e hoje incitam seus membros a impedir a taxação dos ricos para resolver o problema do endividamento do país, trazido pelas guerras, e a exigir os cortes nos gastos sociais, como os da saúde e da educação. Essa mesma manipulação produziu Quisling, o traidor norueguês a serviço de Hitler durante a guerra, e agora partejou o matador de Oslo.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

A SUPREMA CORRUPÇÃO NO STF

Caros leitores e leitoras,

Abatido por alguma dessas viroses que como médicos diagnosticamos tão candidamente (e que delas também somos vítimas), tive a cama como suporte e a televisão como janela para acompanhar ao vivo, por esta jóia da democracia que é a TV Justiça, o julgamento da reclamação que o governo italiano lançou contra o presidente Lula no STF. De pronto, o presidente Min. César Peluso organizou a causa no sentido de se estabelecer inicialmente o cabimento da reclamação, ou em outros termos, a sua admissibiidade, etapa preliminar sanatória obrigatória a este e outros tipos de recursos àquela casa. Em rápida votação, e com clareza de posições, os ministros por maioria decidiram pela não admissibilidade da reclamação, e que, ato contínuo, deveria proceder-se o pedido avulso de soltura imediata de Cesare Battisti, uma vez, que na condição de ex-extraditando, não mais cabia sua manutenção em cárcere que já ultrapassara o tempo recorde para um detento naquelas condições. Entra em cena então o nosso dileto ministro Gilmar Mendes (a quem aponho os também sobrenomes Dantas e Abdelmassih, em homenagem aos distintíssimos cidadãos homônimos que aquele ministro tão nobremente preservou a liberdade) a exigir e requerer o seu direito de leitura de voto. Tal voto, meritório mesmo do título de tese, vem, em contrário do já decidido pelo plenário, com requintado discurso jurídico e filosófico, expor sua posição que além de vencida preliminarmente, ridicularizaria a posição daquela mesma casa que submeteu ao então Presidente da República o poder final de decidir sobre o caso. Estendeu-se o eminente professor por duas horas a discorrer com suas proverbiais exacerbações emotivas sobre sua concepção pessoal, que por mais acadêmica que fosse, era da mais absoluta inutilidade.

Com que direito aquele senhor, referência nacional em habeas corpus "pingue-pongue" para as mais indistintas personalidades, apropria-se de duas horas da vida da república para expor seu personalíssimo e inútil constructo? Por acaso não reza a CF que os detentores de cargos públicos devam pautar-se pela impessoalidade, pela eficiência, pela economicidade, pela finalidade, pela legalidade, pela moralidade? Em que medida tais princípios são contemplados pela leitura de um voto inútil, tomando o tempo de todo o staff do STF, dos meios de comunicação, dos advogados e procuradores lá presentes, do povo brasileiro?

Muito bem fizeram os eminentes ministros subsequentes, que elegantemente renunciaram ao seu líquido e certo direito de leitura, expondo com clareza o respeito aos colegas e ao público e sintetizando em poucas palavras aquilo que já estava claramente decidido, por sinal, em favor da independência de nossa nação, que não inovou neste caso.

Com seu discurso que mais serviu para fazer eclodir os impulsos fisiológicos mais escatológicos, o ministro Gilmar Mendes mostrou à nação toda a anatomia da mais pura expressão de corrupção, a verdadeira degradação dos princípios e valores republicanos, a profunda e repugnante miséria moral de um verdadeiro meliante, desgraçadamente incrustado naquele máximo tribunal. Esta, é corrupção que mais temo, pois é a que verdadeiramente empobrece uma nação, a que é praticada pelo indivíduo que se apodera da coisa pública com o único fulcro de exercitar o seu mais que inflado e patológico ego, travestindo sua torpe posição política travestida de suposto saber jurídico.

Por fim, quis o decentíssimo ministro que absolveu torturadores do nosso quintal, mandar Battisti para o cárcere estrangeiro perpétuo.

Nojo.

NELSON NISENBAUM

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Enquanto Fux fucks, Mello mela.

Caras leitoras e caros leitores,

Enquanto a grande imprensa literalmente chafurdava na lama sintética do caso Palocci, corria ontem mais uma tentativa de se julgar a ADI 1923 (ação direta de inconstitucionalidade da lei 9637/98 que criou entre outras coisas as organizações sociais de saúde). Há 13 anos no STF, a ação já frequentou os gabinetes de Nelson Jobim, que engavetou o proceso por mais de um ano, até onde sei, de Eros Grau, que pelo menos escreveu um belíssimo voto, dando conta de todas as vertentes teratogênicas do aludido diploma legal, do Min. Ayres Brito, que enriqueceu o conhecimento sobre as respectivas patogêneses da lei, e mais recentemente, de Luiz Fux, que ontem apresentou seu voto e seu ânimo de entortar ainda mais o debate, que por sua vez foi interrompido pelo pedido de vista de Marco Aurélio Mello. Este, que já bem conhece o processo pois é a quarta vez que vai à pauta, deu-se ainda por não esclarecido em uma matéria puramente teórica e totalmente afeita ao mister daquele egrégio.

A importância do julgamento deste processo reside no fato de que esta sentença regerá a administração da saúde pública (ou do que sobrar dela no momento da sentença) que é financiada por um orçamento multibilionário. Orçamento este, que vem sendo transferido às OSS sem controle algum de qualquer órgão colegiado independente ou democrático, violando os diplomas constitucionais e legais correspondentes. Sim, estamos falando de dezenas de BILHÕES de reais da saúde pública. Mas, o PIG acha importante mesmo explorar o fato de uma empresa de Palocci ter comprado um apartamento de luxo e um escritório. Nem vou me atrever a discutir os méritos intrínsecos a essa questão (Palocci), até por que fica claro que o que importa no momento é o quem, o quando e o por que. Mas no cenário maior, fica muito claro que o absoluto silêncio da grande imprensa quanto aquele julgamento também tem como causa incontáveis e inomináveis "quem, quando e por ques". Também não me atreverei a comentar o voto do Min. Fux (quem quiser ouvir, está no site da Rádio STF, no noticiário de 19/05/2011) na matéria jurídica, pois criou mais fatores de confusão do que de esclarecimento, além de mostrar desconhecimento e desinteresse pelas causas e naturezas institucionais do SUS. Claro, ele olvidou-se do fato de que o SUS é feito de gente e que existe para atender gente. Mas, no caso do Min. Fux, fica ainda a frustração por não ter conseguido sequer contemplar uma mínima dose de humor, que era de se esperar, pelo menos pelo fato de ele ser carioca.

Mas fica mesmo o trauma pela atitude do PIG, que em troca de tratar de um assunto que afeta a vida de 140 milhões de brasileiros preferiu apontar os holofotes para Palocci. No fim das contas, penso que o maior erro de Palocci é existir. Enquanto isso, Fux fucks e Mello mela. E claro, por dever de ofício, o PIG chafurda.

NELSON NISENBAUM

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O perigo da pseudointelectualidade

Caros leitores e leitoras,

As famosas e "doutas" páginas amarelas da Veja desta semana trazem entrevista com o professor Denis L. Rosenfield, filósofo gaúcho que na sua argumentação aponta aquilo que tem como excessos do estado na regulação da vida do cidadão comum. Queixa-se mais especificamente da Anvisa, tema no qual guardo um certo grau de solidariedade com suas angústias. Entretanto, o professor tenta convencer-nos que os excessos da Anvisa são consequências da forma de governar do PT, e por outro lado, insiste na tese de que o estado não deve tolher as liberdades do cidadão no que tange a atos como fumar, alimentar-se com produtos de má qualidade, e assim por diante. Cita filósofo do século XVII, John Locke, que afirmava que ninguém pode ser obrigado a ser rico e saudável contra a sua própria consciência.

Contestar o professor Denis exigiria um grande texto e um grande esforço físico (não intelectual) que apenas valorizaria uma vergonhosa atuação de um professor de filosofia. Mas, sinto-me minimamente na obrigação de alertar sobre alguns pontos. Em primeiro lugar, trazer John Locke ao debate atual é zombar da nossa paciência, afinal, a realidade do estado e dos conhecimentos científicos, e mesmo dos riscos epidemiológicos daquela época guardam distância astronômica do momento atual. Naquele tempo, nem se imaginava o que seria uma política de saúde pública e o grau de contribuição de cada elemento da sociedade neste processo. O conhecimento científico da medicina estava nas fraldas, para dizer o mínimo. A frase de Locke, no contexto atual, é portanto uma pilhéria, de péssimo gosto, por sinal.

Na questão de atitudes que possam ferir a liberdade do indivíduo, como enfatiza o professor na questão do fumo, por exemplo, vale lembrar que o maior regulamentador de propaganda (do que ele também tanto se queixa) de álcool e cigarro foi o Sr. José Serra, em suas gestões no Ministério da Saúde e no governo do estado de S.Paulo. Ao que me consta, aquele senhor jamais engrossou as fileiras do PT. Resta o debate se cabe ao estado regular isto ou coisas equivalentes, sob a argumentação das liberdades individuais. E por acaso, alguém pode ser livre ao tornar-se dependente de substâncias químicas vendidas e distribuídas sem qualquer controle? Por acaso alguém pode fazer escolhas livres desconhecendo as consequências dessas escolhas?

Já manifestei-me por diversas vezes contra a fúria da Anvisa, e em muitos pontos concordo com o professor, mas por outros motivos e causas.

Mais adiante, faz o professor críticas ao estado quanto às legislações, em um discurso que insinua ao desavisado que as leis brotam de iniciativas unilaterais do executivo, em nenhum momento ressaltando o papel das câmaras e de sua representatividade democrática. Atribui ainda ao PT a capacidade de atrair os representantes do atraso político e ideológico para o governo. Ora, professor, nenhuma citação ao governo FHC, que atraiu Antonio Carlos Magalhães, Jáder Barbalho, Inocêncio Oliveira, Marco Maciel, entre tantos outros coronéis? Nenhuma citação aos setores religiosos retrógrados e teocráticos? Por um lado, chama Locke, do século XVII, por outro lado, ignora (ou esconde) o quintal da nossa história?

Como disse anteriormente, o trabalho de contestação seria imenso, e não disponho de tempo e combustível para isso, mas minimamente, cumpro o meu dever de ressaltar os riscos da pseudointelectualidade, que parece ser uma marca indelével de certos setores da imprensa que já perderam o senso de medida na sua marcha fúnebre pós-eleitoral de 2010. Realmente, é impressionante a capacidade da direita de fazer um belo e atraente embrulho de seu ideário anêmico e mixedêmico. Que pena, o debate poderia ser melhor. A Veja continua insistindo no papel de presente para embalar o nada.

NELSON NISENBAUM

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os olhos opacos do Sr.Aleluia.

De olhos opacos no turbilhão do mundo
Por: Mauro Santayana*

Mauro Santayana
Mauro Santayana
Como uma universidade européia acerta ao dar o título de doutor honoris-causa ao operário Lula

O engenheiro baiano José Carlos Aleluia enviou carta ao Reitor da Universidade de Coimbra, protestando contra a concessão do título de doutor honoris-causa ao operário Luis Inácio da Silva, que, com o apelido afetivo de Lula, presidiu ao Brasil durante oito anos. Sem mandato, Aleluia mantém contatos com seus eleitores, mediante um site na Internet.


Ele foi um oposicionista inquieto, ocupando, sempre que podia, a tribuna, no ataque ao governo passado, dentro da linha sem rumo e sem prumo do DEM. Aleluia considera uma ofensa às instituições acadêmicas o titulo concedido a Lula, e faz referência elogiosa à mesma homenagem prestada ao professor Miguel Reale. Esqueceu-se, é certo, de outros brasileiros honrados pela vetusta universidade, como Tancredo Neves. Não é preciso conhecer a teoria de Freud para compreender a escolha da memória de Aleluia.


O título universitário é, hoje, licença profissional corporativa. O senhor Aleluia está diplomado para exercer o ofício de engenheiro. A Universidade o preparou para entender das ciências físicas, e é provável que ele seja profissional competente, tanto é assim que ministra aulas. O título universitário certifica que o graduado estudou tal ou qual matéria, mas não faz dele um sábio. O conhecimento adquirido na universidade é importante, mas não é tudo. Volto a citar, porque a idéia deve ser repetida, os versos de um escritor mais identificado com a direita do que com a esquerda, T.S. Elliot, nos quais ele mostra a diferença entre ser informado, conhecer e saber: Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?


O título de Doutor Honoris-Causa, sabe bem disso o engenheiro Aleluia, não é licença profissional, mas o reconhecimento de um saber, construído ao longo do tempo, tenha o agraciado ou não freqüentado a universidade. O papel da Universidade não deveria ser o que vem desempenhando – o de conferir certificados de preparação técnica -, mas o de abrir caminho à busca do saber. O Senador Christovam Buarque, com a autoridade de quem foi reitor da UNB, disse certa vez que a Universidade ideal será aquela que não expeça diplomas.


Lula, com os seus defeitos, e não são poucos, é um doutor em política. Um chefe de Estado não administra cifras, não faz cálculos estruturais, não prolata sentenças, nem deve escrever seus próprios discursos. Cabe-lhe liderar os povos e conduzir os estados, e isso dele exige muito mais do que qualquer formação escolar: exige a sabedoria que desconfia do conhecimento, e o conhecimento que se esquiva das informações não confiáveis.


A universidade é uma instituição relativamente nova na História. Ela não foi necessária para que os homens, com Demócrito, intuíssem a física atômica; com Pitágoras e Euclides, riscassem no solo figuras geométricas e delas abstraíssem os teoremas matemáticos; e muito menos para que Fídias fosse o genial arquiteto e engenheiro das obras da Acrópole e o escultor que foi. Mais ainda: as maiores revoluções intelectuais e sociais do mundo não dependeram das universidades, embora nelas se tenham formado grandes pensadores – e sua importância, como centro de reflexões e pesquisas, seja insubstituível. O preconceito de classe contra Lula sela os olhos de Aleluia e os torna opacos.


Solidário o meu autodidatismo com o de Lula, quero lembrar o grande escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson: um talento pode formar-se na obscuridade, mas um caráter só se forma no turbilhão do mundo.


É no turbilhão do mundo que se forma o caráter dos grandes homens.

*Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário do qual foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), onde esteve como colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.



Caros leitores e leitoras,

Pululam nos blogs e nos sites de imprensa condenações ao ato estadunidense de eliminar Bin Laden. Tomado ao pé da letra, o ato foi ilegal, brutal, e talvez até mesmo desnecessário. Mas no conjunto, revelam uma psicologia talvez não menos brutal. Muitas vezes a brutalidade não está nas ações, mas nas omissões, sempre ocultas, protegidas pelas máscaras do cotidiano frugal. Mas, uma interpretação mediana deste conjunto de assertivas observadas, de forte conteúdo antiamericano, antiisraelense, pró-palestina, e outros "ismos", revela alguns sentimentos (e também a ausência deles) que não guardam simetria em relação aos pontos que pretendem defender.

As organizações terroristas fundadas no radicalismo islâmico já produziram muito mais mortes no próprio mundo muçulmano do que no mundo ocidental, cristão, israelense, etc. Em dezenas de atentados a bomba, muitas vezes protagonizados por suicidas, extinguiram milhares de vidas em diversos lugares do planeta. No entanto, jamais vimos estas pessoas que condenam o ato norteamericano manifestarem-se contra estes atos de terrorismo, mesmo quando ele mata árabes, indonésios, russos, chechenos, paquistaneses, iraquianos, e assim por diante. O que dá uma clara dimensão de que para este conjunto de antiamericanos, ou pelo menos para a maioria deles, a vida daquelas pessoas não vale nada, e os atos da Al-Qaeda são sempre justificáveis como resposta ao "imperialismo". Sim, explodir as estátuas de Buda no Afeganistão tem tudo a ver com os Estados Unidos e com o capitalismo, seria a dedução lógica destes enunciados.

No fundo, muitos cultivam uma admiração secreta por Bin Laden, por ter ferido os americanos no seu quintal. Outros, argumentam que Bin Laden "é cria americana", o que evidentemente desqualifica a pessoa de Bin Laden, que teve pai, mãe, família, pátria, dinheiro (e muito) e que desfrutou bastante das benesses ocidentais. Sim, desqualifica pois tal argumento subtrai de Bin Laden a sua autodeterminação, seu livre arbítrio. Torna-o menos humano, além de construir o mito. Por outro lado, esquecem-se (ou ignoram?) os antiamericanos que a Al-Qaeda fomenta ações do radicalismo islâmico, apoiando estados teocráticos e impondo a tão sonhada (por eles) hegemonia islâmica, que pretende um mundo onde homossexualismo, bebida alcoólica, democracia, igualdade das mulheres, entre outros bens ocidentais, sejam banidas e punidas com apedrejamento, enforcamento, chicoteamento, e outras delicadezas. Lembremos ainda um discurso feito por um líder do radicalismo islâmico há poucos anos: "Vocês (ocidente) amam a vida. Nós, amamos a morte."

Não faltam no nosso país atos brutais. Temos uma polícia que é uma das que mais mata no mundo (sem processo, julgamento, etc.). Temos presídios superlotados onde dezenas de milhares de presos vivem em condições mais que degradadas e degradantes. Onde estão os que condenam as torturas de Guantánamo? Por acaso não temos tortura aqui? Temos moral para fazer estes questionamentos?

Não é digna a comemoração da morte de Bin Laden. Como não é digno o lamento. Mas, isto é problema entre os norteamericanos e a Al-Qaeda. Vamos cuidar do que é nosso, pois há muito a fazer para que possamos posar de juízes. Não temos vivência neste tipo de conflito. Mas é importante saber que muito provavelmente, um dia ele baterá a nossa porta. E teremos que escolher um lado. Espero que o conselho do ex-presidente Lula, dado em um discurso em 2003 seja seguido: Vamos resolver os nossos problemas.

NELSON NISENBAUM

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Mantendo Lula no pelourinho

Caros leitores e leitoras,

Certos setores da mídia (difícil imagninar quais...) vem fazendo de tudo para manter o Presidente Lula no topo das páginas, mantendo também, simbolicamente, a imagem do ex-presidente presa ao pelourinho onde recebe as intermináveis sevícias públicas. Falta de assunto ou patologia mesmo. A bola da vez ficou novamente com Boechat, da Rádio Bandnews, que seria até um veículo bastante simpático, ágil e leve, não fosse o entortamento dos lábios daquele radialista produzido pelo eterno cachimbo do pensamento direitista, que não cansa de lançar fumaça velha. No seu editorial de hoje, Boechat tenta colar no ex-presidente a pecha de malandro, baseando-se no discurso que Lula fez ontem em algum lugar (sinceramente, não prestei atenção e não tem importância) dizendo que os brasileiros assalariados devem participar do combate à inflação. Entende o radialista que o ex-presidente adota a linha de fugir de suas responsabilidades além de justificar a impotência dos atuais governantes que ajudou a eleger. O que quer Boechat? Que os governantes tabelem os preços? Que abandonem a democracia e governem por decreto? Certíssimo, e didático está nosso ex-presidente, ao dizer à população que está em suas maos uma parcela de responsabilidade não só sobre o controle de preços (via comportamento de consumo) mas como também sobre os mais diversos aspectos da nação e da vida democrática, pois afinal de contas, democracia tem demos, que significa povo. O que é uma democracia sem um povo que divide com seus representantes as responsabilidades sobre os rumos da nação? Mas não é isso que querem os bocas-tortas. Querem mesmo o governo autoritário, onde evidentemente, possam, como agentes de comunicação, dizer ao país o que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode. Sobre a inflação em alta, claramente é consequência da concorrência de diversos fatores, mas claramente por pressão de demanda, que por sua vez sucede o crescimento econômico e o poder de compra da população. Nada mal para um país que atravessou a crise dos 4 trilhões de dólares em 2008-2009 sem desemprego e sem recessão, diante de um presidente que soube conduzir o país com autoestima e autoconfiança.

NELSON NISENBAUM

domingo, 10 de abril de 2011

Medicina da Alma: Morte na escola (Rio de Janeiro, 07 de abril)

Medicina da Alma: Morte na escola (Rio de Janeiro, 07 de abril): "Hoje, horrorizadas e perplexas, famílias choram suas perdas, enterram crianças. Seu sofrimento é intenso, legítimo e pavoroso. Muito já foi ..."

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A crise na Sinfônica Brasileira

Caros leitores e leitoras,

A crise instalada na OSB é realmente uma tragédia no cenário da música erudita nacional. Em resumo: O maestro Roberto Minczuk, sob o pretexto de aumentar os salários dos músicos, tentou instituir uma reavaliação individual dos músicos por uma banca internacional. Houve uma rebelião, 37 músicos foram desligados, e figuras como Nelson Freire e Cristina Ortiz, entre outros, cancelaram seus concertos programados para este ano.

Realmente, parece este cenário aquilo que o público mais queria, ironizo.

Tenho enorme admiração pelo maestro Minczuk, como músico. Como administrador ou como líder, neste episódio pelo menos, mostrou-se desastroso. Aparentemente, pelo que se divulgou na mídia, foi um enfrentamento pessoal, onde outras motivações não se evidenciaram. É lícito e atinente ao maestro titular de uma conceituada orquestra zelar pelo primor técnico de seus músicos. Mas há diversas formas de se conduzir uma avaliação, e sem dúvida, submeter um músico que trabalha duas ou 3 décadas em certa orquestra a uma banca técnica alheia à sua realidade, é uma temeridade sob o ponto de vista cultural e uma humilhação sob o ponto de vista pessoal. Cada músico de uma orquestra tem sua cota de participação no prestígio da instituição, e se Nelson Freire e Cristina Ortiz disponibilizaram-se a apresentar-se com aquele grupo, é por que sem dúvida o grupo é bom.

A situação faz-me lembrar alguns parágrafos de um livro do Rabino Nilton Bonder ( A Alma Imoral ) onde faz a clara e sábia diferenciação entre o que é bom e o que é certo, e entre o que é o mal e o errado. O maestro está correto na sua busca por perfeição. Mas os meios que utilizou para este fim mostraram-se em tamanho descompasso e desarmonia (para usar termos específicos) com a realidade que o resultado foi um grande mal. E infelizmente, ele deve ser responsabilizado por isso. A imposição dos propósitos pessoais sobre entidades grupais tem seu preço. Ou paga-se o preço através da negociação política, que exige um alto grau de articulação e conhecimento da realidade, ou através do confronto e possíveis e previsíveis consequências.

Herbert Von Karajan levou, por décadas, a Filarmônica de Berlim a um padão técnico estupendo, sendo por muito tempo um recordista em divulgação e venda do repertório erudito. Não obstante, terminou sua carreira divorciado do seu grupo, em um melancólico exílio. O talento musical perdeu para o personalismo.

Pessoas excessivamente talentosas (e reconheço no maestro Minczuk um exemplo, Karajan, nem se fala...) tendem a se esquecer que o mundo não é feito de pessoas excessivamente talentosas. Portanto, devem aprender a medir seu nível de exigência com o prumo da realidade, sem colocar a perder os seus valores individuais. Para completar, a orquestra é uma entidade cuja clientela é o nobre, respeitável, e sempre correto, consumidor. Ele também deve ser ouvido, assim como ouve a orquestra.

Resta a tristeza de ver a OSB ruir por motivos evitáveis, abrindo uma enorme ferida no nosso mundo musical. Se perdermos a orquestra, não poderemos perder a lição.

NELSON NISENBAUM

quarta-feira, 30 de março de 2011

Caros leitores e leitoras,

Amanhã entrará na pauta do STF, após quase 13 anos, ou julgamento da constitucionalidade da lei 9637/98 (governo FHC) que estabelece as Organizações Sociais de Saúde. Muitas vezes fico impressionado com o grau de desconhecimento sobre o assunto por parte da população em geral. Tais entidades, inexistentes até 1998, passaram a existir "por decreto", em uma verdadeira reedição da teoria da geração espontânea, tão cultivada na baixa idade média. Em miúdos, instituições privadas "de comprovada capacidade e eficiência" na gestão de saúde pública podem pleitear este "título" e então concorrer para a gestão do SUS em hospitais, ambulatórios, postos de saúde, e assim por diante. Em outras palavras, da noite para o dia, alguém recebe o título de competência e eficiência por fazer o que nunca fez. Afinal, receber pagamentos por serviços prestados ao SUS não significa gestão do SUS, conceito infinitamente mais amplo e complexo. Tais instituições, de acordo com a lei, regem-se pela lógica do setor privado, pautando-se pela "agilidade administrativa" e pela lógica de mercado, sepultando e cobrindo com pás de cal o conceito de serviço público e de ação de estado.

Desde sua implantação, outros princípios fundamentais do SUS também foram sepultados na cova ao lado, fundamentalmente o do controle social. Cláusula petrea do SUS, com fulcro constitucional, o controle social é o que permite a transparência e confere ao cidadão o poder (e o dever) de fiscalizar a gestão, inclusive nos aspectos financeiros, como bem frisa a lei 8142 e demais regulamentações. As OSS não prestam contas aos respectivos conselhos (municipais e estaduais) e sequer são fiscalizadas pelos tribunais de contas. Assim, verbas públicas de finalidade pública entram nas caixas pretas inexpugnáveis da burocracia privada, que por sua vez acomoda no seus intestinos os interesses dos agentes políticos de plantão, formando uma espécie de cartel que talvez só não tenha sido pensado por Al Capone.

Ainda como consequência, dezenas de milhares de carreiras públicas de servidores concursados (inclusivo este que vos escreve) tiveram e continuam tendo suas relações trabalhistas e seus direitos mais do que violados, além de outras humilhações e violências institucionais, tudo sob o silêncio dos tribunais. Poucos detiveram-se na análise das consequências de toda essa desarticulação sobre programas bem estabelecidos e executados por abnegados soldados e exércitos de nossa honrada história sanitarista.

Desde sua entrada em vigor, e da sua efetivação através dos agentes correspondentes, esta política já produziu suficiente material de análise capaz de confrontar parte razoável dos códigos civis e penais, estando este bastante bem protegido atrás dos balcões do poder e da seletividade da grande mídia, que aliada aos interesses privados, prossegue na sua cruzada infindável contra o serviço público, este, cada vez mais sofrido e limitado pela drenagem diluviana de recursos públicos em favor dos interesses privados.

Fica no ar a esperança de que o STF banhe-se nas águas da autocrítica, como suprema instância do sistema jurídico brasileiro, e que pelo menos, pelo temor de que alguém venha um dia criar por decreto as "Organizações Sociais de Justiça", analise a lei 9637 com os olhos (cegos?) voltados aos princípios mais basilares e afetos de nossa carta, diferentemente do que fez no caso da lei da "ficha limpa", onde o formal sufocou o fundamental, ressalvando-se a postura dos 5 ministros que homenagearam a cidadania.

Agora, só resta rezar.

NELSON NISENBAUM

quinta-feira, 24 de março de 2011

He really Fux

Caros leitores e leitoras,

O pleito presidencial americano que elegeu George W.Bush em 2000 foi decidido por uma única pessoa - um juiz da suprema corte americana. Naquela votação, cujo placar foi de 4 a 3, decidia-se a validade de um pleito repleto de incidentes e suspeitas de fraude. Assim, um único voto de uma única pessoa decidiu o futuro de centenas de milhões de habitantes do planeta - e talvez, do próprio planeta. O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem que a lei da ficha limpa não vale para o pleito 2010, por um placar de 6 a 5. Desta vez, o recém-empossado ministro Luiz Fux, de currículo invejável, desempatou o jogo, tornando-se portanto, moralmente responsável pela validação da eleição de algumas dezenas de eleitos que tem antecedentes civis e criminais nada abonadores, conforme constatados pelo Tribunal Superior Eleitoral. É realmente admirável a coragem de um homem que decide um jogo desta natureza. Mas se por um lado a coragem é admirável, as motivações, não tanto, na minha humilde compreensão. Sem a intenção de promover aqui um debate jurídico, pois não tenho as mais modestas credenciais para tal, pelo menos tentarei trazer outros elementos filosóficos e factuais. Afinal, o que se passa na cabeça dos ministros do TSE e dos 5 ministros do STF que votaram a favor da validade imediata? É simples. Passa-se na cabeça deles a clara compreensão de que entre os princípios constitucionais que regem a administração pública brasileira, está o da moralidade, princípio este tão demandado pela sociedade, e não de hoje. No quarto ao lado deste ambiente, habita o princípio da eficácia da lei, aplicável apenas no exercício seguinte ao da entrada em vigor da respectiva. A questão é que o princípio da moralidade entrou em vigor em 1988, portanto, 22 anos antes de 2010. A lei da ficha limpa é uma mera regulamentação tardia desse princípio. Situação análoga foi a vivida no TSE, quando decidiu pela pertinência do cargo ao partido e não ao eleito, sob acusações de abuso legislativo e interferência entre poderes. Mas o princípio já existia, simplesmente não havia sido invocado nos tribunais até então. Consultado, o TSE posicionou-se pela simples exegese, decidindo por não aguardar a produção legislativa correspondente, que apenas trataria de traduzir em miúdos o princípio já clarificado na carta magna. Assim, entre o moral e o formal, que moram na mesma casa, o ministro Fux decidiu pelo formal, consolidando mais uma vez o poder da letra fria da lei sobre aquilo que poderíamos chamar de "espírito da lei", mais do que ecoado e ressoado por toda a sociedade neste período de nossa história. Assim, a justiça se fez, cega, surda, e fria, presenteando cidadãos de péssimos antecedentes com seus respectivos mandatos, condenados por toda a sociedade. Não faltou testosterona ao ministro. Aliás, eu diria em inglês, "he really fux".

NELSON NISENBAUM

quarta-feira, 23 de março de 2011

Vá você, Boechat!

Caros leitores e leitoras,

O jornalista Ricardo Boechat brindou-nos hoje pela manhã (18/03/11) com certos comentários que não podemos deixar de considerar. Ao falar sobre as consequências ao cidadão carioca da visita do presidente americano, achincalhou o prefeito do Rio de Janeiro, terminando seus argumentos com os seguintes termos: "... mas político não leva tiro. Infelizmente. " A prosseguir, teceu duras críticas à imprensa em geral pela cobertura - que considera exagerada - dada ao prefeito de S.Paulo e sua possível mudança de partido e criação de um novo. Nas suas conclusões, disse: "Quero mais é que ele (o prefeito de S.Paulo) vá para aquele lugar que não posso falar aqui.... para onde deveriam ir, aliás, os políticos em geral..."

Em primeiro lugar, vá você, Boechat, mais parecendo no momento um BOBechat.

Em segundo lugar, se você está tão descontente com nosso país e com os nossos políticos, você pode ir embora daqui na hora que quiser, pois você vive em um país livre e democrático. Embora não exerça cargo eletivo, sou político, e juntam-se à minha categoria (de não eleitos) dezenas de milhares, que embora não empossados, lutam por um país melhor, cada um à sua forma, e exijo respeito de vossa parte, que aparentemente desistiu da democracia em favor de balear os políticos e mandá-los àquele lugar. Se você se coloca em condições de criticar tão pesadamente os seus colegas de imprensa, deveria portar-se mais dignamente frente aos teus ouvintes e leitores, mas se quer mesmo seguir no ramo da palhaçada, chame o Tiririca, ele fará melhor, e conseguiremos pelo menos rir. Mas ele está lá, a exercer o seu mandato legitimado pelo mesmo sistema que te permite se expressar à sua audiência, com as barbaridades que te colocam muito abaixo daqueles a quem você tanto vocifera.

Aliás, o teu emprego em uma empresa de comunicação de massa, existe por que políticos assim o fizeram, através de leis e instituições que permitem a existência dela, e o teu direito de falar o que quer, deriva da luta de uma geração contra a ditadura. A vida política é feita de pessoas, de grupos de interesse, e a empresa da qual você faz parte não deve ser exatamente um convento, em se tratando de grupos de interesse. E muitas vezes, ao interagir com os políticos que você tanto critica, deve ter mandado para aquele lugar os verdadeiros interesses da população.

NELSON NISENBAUM

terça-feira, 1 de março de 2011

Caros leitores e leitoras,

A recente tentativa da ANVISA de banir todos os anorexígenos das farmácias brasileiras merece mais atenção do que pode parecer em uma primeira abordagem. Formei-me médico em um ambiente político e cultural onde as decisões sobre o diagnóstico e tratamento farmacológico dos pacientes era prerrogativa da classe médica, que por sua vez, baseava-se na literatura científica, na cultura do meio, nas experiências vividas e relatadas, e no interesse de cada paciente, onde suas particularidades compunham a "cesta" de dados usados para se estabelecer os critérios de riscos e benefícios. O desenvolvimento e divulgação da medicina baseada em evidências trouxe um novo paradigma para a prática médica, ressalvando-se as faltas e excessos interpretativos que induziram muitos a erros, sendo o exemplo mais clássico o do estudo DIG (1995), que terminou por desmoralizar a digoxina como ferramenta terapêutica trazendo imensos prejuízos a quem dela necessitava. O fato foi tão grave que no congresso do American College of Cardiology de 1999, onde estive presente, realizou-se uma plenária com talvez 2000 cardiologistas de diversos países para um "realinhamento" do conhecimento sobre aquele que é um fármaco utilizado há séculos no tratamento da insuficiência cardíaca. Sim, a ciência também pode produzir mal-entendidos, além do conhecimento, e apenas o ambiente do livre pensar e o da busca incessante da verdade pode ser o norte da prática médica e da saúde pública.

O passar dos anos trouxe ao nosso contexto a ANVISA, órgão regulamentador e fiscalizador de insumos médicos, sanitários e de qualquer coisa que possa interferir na saúde dos brasileiros. Desde então, diversas intervenções desta agência, pressupostamente a serviço da segurança das atividades relacionadas à saúde, revelaram um temperamento por demais agressivo, dado que estabeleceram normas e vedações que interferem diretamente na prática médica sem o devido debate com nossas classes profissional e científica, e sem a supostamente devida coerência com outras práticas estabelecidas. Medicamentos foram retirados do mercado com critérios de segurança que não deixariam muitos dos mais vendidos medicamentos nas prateleiras das farmácias. Proibições foram impostas às farmácias de manipulação, exatamente nos tópicos onde elas tinham o melhor potencial de atendimento às necessidades personalizadas de pacientes. Dificuldades intermináveis no registro de novos medicamentos já aprovados em outros continentes retardaram a sua aplicação no paciente brasileiro. E a mais recente, a tentativa desastrada de banir todos os anorexígenos do mercado, tomada com base em "evidências científicas de que os riscos são maiores que os benefícios". A audiência pública realizada no último dia 23 de fevereiro foi marcada por um tensionamento inédito entre a classe médica e o órgão, justamente pelo fato de que a ANVISA não revelou à sociedade os tais dados de risco, aparentemente só a eles acessíveis, pois que são desconhecidas das respectivas sociedades de endocrinologia e metabolismo, entre outras. Em uma postura reveladora, a ANVISA postergou, sine die, a publicação da estrondosa resolução.

O episódio pode ser interpretado como uma confissão de burocratas, que pretendem estabelecer verdades absolutas a partir de si mesmos, governar a prática médica e apropriar-se espuriamente de um conhecimento para o qual mostram não ter a devida e necessária competência. A prática médica não pode ser confundida com ciência médica. Esta última, é a instância produtora de conhecimentos; a primeira, utiliza os conhecimentos na prática clínica, que só pode ter como pretensão a produção de uma verdade individual e inalienável, que é a do paciente. Os riscos calculados em condições controladas por certos estudos científicos muitas vezes não refletem a situação do indivíduo. Ainda que assim fosse, chegaríamos então ao ponto fundamental deste texto: Pode a ANVISA interferir em caráter absoluto sobre o desejo dos pacientes, sobre a decisão de seus médicos, confrontando um conhecimento acumulado em décadas de experiência? A responder sim, estaremos transferindo e um órgão não representativo da sociedade a capacidade de usurpar de suas funções precípuas, ao invadir o território legislativo, científico, o da prática médica, e o da intimidade da pessoa humana. O debate aqui colocado é imensamente maior que o aparente, estamos tratando sim de direitos fundamentais. Uma vez ultrapassado este limite, se a sociedade assim permitir, a procuração estará passada aos burocratas, permitindo-os a regular virtualmente qualquer aspecto da vida e suas relações com a saúde. Sairemos do campo do debate científico e do amadurecimento democrático para retroceder ao paternalismo autoritário ou ao mundo obscuro dos dogmas petrificados. Vamos ter que escolher.

NELSON NISENBAUM

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

JUSTIÇA QUE QUEREMOS

Artigo - "A Justiça que o povo quer", por João Baptista Herkenhoff*
A Justiça não pode amedrontar o cidadão, oprimir, estabelecer muros, desencorajar a busca de direitos por parte dos fracos. Juízes e demais servidores devem ser corteses, atentos, entendendo que a Justiça é um serviço público essencial, de que o povo é credor

O povo tem fome de Justiça, tanto quanto tem fome de pão. A respeito deste reclamo da cidadania escrevemos esta página. Tentamos desenhar os contornos da Justiça que, se realizada, supomos seja aquela que o povo quer.

O povo deseja encontrar na Justiça o último bastão de suas esperanças. Quer uma Justiça mais ágil. Não é razoável que uma causa demore um quinquênio ou até um decênio para chegar ao seu final. É possível abreviar o andamento da Justiça, sem prejuízo de princípios fundamentais como o contraditório (isto é, o embate das partes), a produção cuidadosa de provas (isto é, a busca diligente da verdade) e o duplo grau de jurisdição (isto é, a possibilidade de recursos contra decisões e sentenças). A abreviação da Justiça exige mudança nas leis, modernização do Judiciário e alteração de hábitos seculares que persistem inalterados.

Impõe-se que a Justiça para os pobres seja mais eficiente. Justiça não é esmola, mas direito. Um dos instrumentos para alcançar esse objetivo consiste na instituição e manutenção de uma Defensoria Pública valorizada, ágil e competente.

Se para os pobres a Justiça deve ser inteiramente gratuita, também para os que pagam custas, a Justiça deve ser mais barata. A Justiça é cara, as despesas cartorárias, em alguns casos, são muito altas. Com frequência, cidadãos de classe média retardam a regularização de situações jurídicas para fugir do peso de custas insuportáveis.

É preciso que se compreenda que a Justiça é uma obra coletiva. Todos devem sentir-se servidores, operários, sem vaidades tolas, sem submissões descabidas. Tanto é importante o juiz, o desembargador, o ministro, o promotor, o procurador, o advogado, quanto o oficial de Justiça, o escrevente, o porteiro dos auditórios, o mais modesto servidor. Se qualquer peça da engrenagem falha, o conjunto não funciona.

O povo deve sentir-se agente da Justiça, participante, ator. A Justiça pertence ao povo, existe para o povo, esse sentimento de Justiça como direito do povo é uma exigência de cidadania.

A Justiça deve ser menos formal, mais direta e compreensível, deve abdicar de códigos indevassáveis, sessões secretas e outros estratagemas que pretendem esconder o que deve ser sempre feito às claras.

A Justiça não pode amedrontar o cidadão, oprimir, estabelecer muros, desencorajar a busca de direitos por parte dos fracos. Juízes e demais servidores devem ser corteses, atentos, entendendo que a Justiça é um serviço público essencial, de que o povo é credor.

A Justiça deve ser sensível, capaz de ouvir as dores dos jurisdicionados. A palavra tem o dom de libertar. Os servidores da Justiça devem sempre estar disponíveis para ouvir o clamor dos que apelam pelo socorro do Direito.

A Justiça tem de ser impoluta. É inadmissível a corrupção dentro da Justiça. Um magistrado corrupto supera, em baixeza moral, o mais perigoso e sórdido bandido.
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*João Baptista Herkenhoff, 74 anos, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante e escritor. Autor de Mulheres no banco dos réus - o universo feminino sob o olhar de um juiz. Editora Forense, Rio, 2008.
E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

REFLEXÕES SOBRE O CASO BATTISTI

Reflexões sobre o caso Cesare Battisti

Nas últimas semanas, tenho acompanhado, com interesse profissional e acadêmico, os diversos artigos e comentários que têm sido veiculados em Migalhas sobre o processo envolvendo o pedido de extradição e a concessão de refúgio a Cesare Battisti. Fiz grande proveito pessoal de todas as manifestações, assim as favoráveis como as desfavoráveis. Naturalmente, como advogado da causa, não poderia me apresentar como alguém que tenha uma visão neutra e imparcial. Mas, de longa data, sou militante da crença de que quem pensa de maneira diferente da minha não é meu inimigo nem meu adversário, mas meu parceiro na construção de um mundo plural e tolerante. E acho, de maneira igualmente sincera, que em um tema levado ao debate público, todos têm direito à própria opinião. Mas, talvez, não aos próprios fatos. As anotações que se seguem têm por finalidade narrar objetivamente os fatos relevantes e expor as principais teses jurídicas que estão em discussão. Ao final, cada leitor, de maneira independente e esclarecida, formará a sua convicção.

1. Militância comunista e no PAC. Cesare Battisti ingressou na organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) em 1976, com pouco mais de 20 anos. Nascido em uma família comunista histórica, militou desde os dez anos na causa, tendo participado dos movimentos Lotta Continua e Autonomia Operária. O PAC praticou inúmeras ações subversivas no período entre 1976 e 1979, com o propósito de enfraquecer e, eventualmente, derrubar o regime político italiano. Tais ações incluíram furtos de carros, furtos em estabelecimentos de crédito, furtos de armas, propaganda subversiva e quatro mortes. Os mortos foram um agente penitenciário, um agente policial e dois “civis”: um joalheiro e um açougueiro. Os dois civis eram ligados à extrema direita, andavam armados e haviam matado militantes de esquerda, em reação a “operações subversivas de auto-financiamento”.

2. Fim do PAC, prisão e julgamento de seus membros. Em 1979, a organização Proletários Armados pelo Comunismo foi desbaratada e a maioria de seus membros foi presa. Levados a julgamento por todas as operações do grupo naquele período, houve diversas condenações. Quatro dos integrantes do PAC – mas não Cesare Battisti – foram condenados por um dos homicídios: o do joalheiro Torregiani. Cesare Battisti não era considerado sequer suspeito de qualquer dos homicídios e não foi acusado de nenhum deles. Foi condenado, no entanto, a uma pena de 12 anos por delitos tipicamente políticos: participação em organização subversiva e participação em ações subversivas. Esteve preso de 1979 a 1981, em uma prisão para presos políticos que não haviam cometido ações violentas. De lá evadiu-se em 1981, em operação conduzida por um dos líderes do grupo – Pietro Mutti –, que não havia sido preso ainda. Battisti refugiou-se inicialmente no México e depois na França, onde recebeu abrigo político.

3. A delação premiada. Em 1982, Pietro Mutti, que era acusado pelos homicídios e por participação na maioria das ações do grupo, foi preso. Abstraindo das muitas denúncias da Anistia Internacional sobre torturas no período, o fato é que Mutti torna-se “arrependido” e “delator premiado”. Nessa condição, acusa Cesare Battisti de ter sido o autor dos quatro homicídios atribuídos ao grupo. Como dois dos homicídios ocorreram no mesmo dia, em localidades diversas e distantes – o do joalheiro Torregiani e o do açougueiro Sabadin –, Mutti afirmou que Battisti seria responsável pelo primeiro como autor intelectual – teria participado de uma reunião em que se discutiu a ação – e do segundo como cúmplice, dando cobertura ao autor do disparo. Nos outros dois homicídios – dos agentes Santoro e Campagna –, Mutti acusou Battisti de ter desferido os tiros.

4. “Provas” totalmente frágeis. As únicas provas contra Battisti foram a delação premiada de Mutti e a “confirmação” feita por outros acusados dos homicídios e das ações do PAC. Mutti mudou diversas vezes de versão e de pessoas às quais acusava, protegendo e incriminando deliberadamente determinados militantes, conforme reconhecimento textual da sentença. As outras “provas” referidas na sentença italiana fariam corar um aluno de primeiro ano de direito penal. Coisas do tipo: o autor do disparo contra Santoro, segundo testemunhas, era louro e de barba. Battisti é moreno e sem barba. No entanto, segundo Mutti, ele estaria disfarçado. Outra “prova”: a pessoa que ligou para a agência de notícias reivindicando a autoria do fato tinha sotaque do sul da Itália. Battisti é do sul da Itália. Logo, Battisti é o autor do homicídio!? Mais ou menos como incriminar alguém no Brasil por ter sotaque nordestino.

5. Réu revel e indefeso. Procurações falsas. A trama era extremamente simples: a culpa de todos os homicídios foi transferida para Cesare Battisti, o militante que estava fora do alcance da Justiça italiana, abrigado na França. Sem surpresa, o processo de Battisti foi “reaberto”, tendo sido ele julgado à revelia e condenado à prisão perpétua. Sem ter indicado advogado e sem ter sido defendido eficazmente. Detalhe importante: as procurações pelas quais os advogados de defesa teriam sido constituídos foram consideradas falsas em perícia realizada na França. De fato, ao fugir, Battisti deixou folhas em branco assinadas. Tais folhas foram preenchidas anos depois – este o fato comprovado pela perícia –, com nomes de advogados que defendiam diversos dos acusados, indicados pela liderança do PAC (isto é, pelos delatores premiados). Não apenas o conflito de interesses era evidente, como o advogado que “defendeu” Battisti afirmou que jamais falou com ele, razão pela qual sequer poderia contestar as acusações sobre novos fatos imputados pelos delatores premiados.

6. Abrigo político na França. Battisti permaneceu na França, como abrigado político, por 14 anos. Trabalhou como zelador até tornar-se um escritor reconhecido, publicado pelas principais editoras francesas. Dentre outras coisas, denuncia as arbitrariedades da repressão italiana. Em 1991, a Itália requereu sua extradição, que foi negada pela Justiça francesa. Cesare Battisti casou-se e teve duas filhas, uma nascida no México, hoje com 25 anos, e outra na França, hoje com 14 anos. Jamais esteve envolvido ou foi acusado de qualquer ação anti-social desde 1979. Em 2003, mais de 12 anos depois do primeiro pedido de extradição, Sylvio Berlusconi chega ao poder na Itália e passa a perseguir os antigos militantes que haviam participado dos anos de chumbo. Diante da recusa da Inglaterra e do Japão de extraditarem antigos acusados, Cesare Battisti se transforma no último troféu político daquele período. A Itália requer uma vez mais à França, já agora sob o governo de Jacques Chirac, a extradição de Cesare Battisti. A França defere. Antes da execução da decisão, Cesare Battisti foge para o Brasil.

7. Prisão e refúgio no Brasil. Em 2007, já próximo das eleições francesas, Battisti é preso no Brasil com a ajuda da polícia francesa, à época comandada por Sarkozy, Ministro do Interior e candidato à presidência. Sua prisão é utilizada como tema de campanha eleitoral, fato amplamente noticiado pela mídia européia. A Itália requer sua extradição. Como a Constituição brasileira veda a extradição por crime político, o pedido italiano destaca do conjunto das condenações apenas os quatro homicídios e sustenta a tese de que foram crimes comuns. Cesare Battisti requer a concessão de refúgio político ao CONARE – Comitê Nacional de Refugiados. O pedido é indeferido por três votos a dois. Em janeiro de 2009, o Ministro de Estado da Justiça, Tarso Genro, apreciando recurso contra aquela decisão, concede-lhe refúgio político.

8. Fundamentos do refúgio. A decisão do Ministro da Justiça se baseou em um conjunto de fatos que são notórios e foram adequadamente narrados na sua fundamentação. A Itália de fato viveu um período de convulsão política conhecido como “anos de chumbo”. Esse período foi marcado por violência, radicalização e pela aprovação de legislação de exceção. Inúmeros relatórios dos organismos internacionais de direitos humanos registraram fatos graves no período, associados à conduta do Estado italiano. Cesare Battisti foi condenado em julgamento coletivo por tribunal do júri, à revelia. Sua extradição só foi concedida pela França, depois de 14 anos, quando o ambiente político havia se modificado na Itália e na França. Era plausível o temor de perseguição política. Alguém pode até discordar da avaliação política do Ministro. Mas a decisão foi bem fundamentada, tendo sido manifestada em linguagem polida e diplomática.

9. Por qual razão aceitei a causa. Procurado pela escritora francesa Fred Vargas, em nome de um grupo de intelectuais franceses que apóia Cesare Battisti, dispus-me a estudar o caso. E, após fazê-lo, aceitei a causa, por considerá-la moralmente justa e juridicamente correta. E isso por duas linhas de razões. A primeira: sou convencido, pelo conjunto consistente de elementos objetivos descritos acima, que Battisti foi transformado em bode expiatório. Seus ex-companheiros e, depois, delatores premiados, estavam certos de que ele se encontrava protegido na França e transferiram-lhe crimes e culpas que jamais teve e pelas quais não havia jamais sido acusado. Ademais, é fora de dúvida que não teve devido processo legal. E de que é um perseguido político. Ainda que não estivesse convencido desses argumentos – como de fato estou –, haveria um segundo, muito consistente.

10. A derrota do socialismo e a vingança da história. Mais de trinta anos se passaram desde os fatos relevantes para o presente processo, ocorridos no auge da guerra fria, do embate entre socialismo e capitalismo. O sonho socialista e a tomada revolucionária do poder faziam parte do imaginário de um mundo melhor de toda uma geração. A minha geração. Eu vi e vivi, ninguém me contou. Condenar esses meninos e meninas – era isso o que eram quando entraram para o movimento – décadas depois, fora de seu tempo e do contexto político daquela época, após a queda do muro de Berlim e da derrota da esquerda, constitui uma expedição punitiva tardia, uma revanche fora de época, uma vingança da história. Gosto de lembrar de uma frase que está inscrita na capela do Castelo de Chenonceau, na França, na entrada, à direita: “A ira do homem não realiza a vontade de Deus”.

O DIREITO

11. Natureza do ato de refúgio. O Ministro da Justiça concedeu refúgio a Cesare Battisti por fundado temor de perseguição política, com base no art. 1º, I da Lei nº 9.474/97. Trata-se, inequivocamente, de um ato político, com ampla margem de valoração discricionária. Havia orientação jurisprudencial expressa do Supremo Tribunal Federal a respeito. Com efeito, a crença de que o conceito jurídico indeterminado “perseguição política” possa ser tratado como algo rigorosamente objetivo, sem margem a valoração discricionária, é singularíssima. Além do precedente já referido – caso Medina –, a doutrina é pacífica. O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, referência nacional e internacional do direito administrativo brasileiro, e citado em favor da tese de que se trataria de ato vinculado, veio a público para dizer, textualmente, que discordava veementemente desse ponto de vista. Além disso, afirmou que a Lei nº 9.474/97 impõe que seja extinta a extradição após a concessão de refúgio. Nesse ponto, aliás, a lei brasileira apenas reproduz as Convenções internacionais sobre refúgio e asilo. Não desconheço que muitas pessoas divergem da decisão política do Ministro. Mas a verdade é que ele era a autoridade competente para tomá-la.

12. Subversão da jurisprudência. Ora bem: assentado tratar-se de ato político, a jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o Judiciário não deve sobrepor a sua própria valoração política sobre a da autoridade competente. O mérito do ato político não dever ser revisto. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, também de longa data, já havia assentado que atos referentes às relações internacionais do país – como o refúgio – são de competência privativa do Poder Executivo. Vale dizer: para extraditar Cesare Battisti, o STF precisa modificar, de maneira profunda, três linhas jurisprudenciais antigas, consolidadas e corretas, passando a afirmar: a) refúgio não extingue automaticamente a extradição; b) não constitui ato de natureza política; e c) atos relativos às relações internacionais do país não constituem competência privativa do Executivo. Até a jurisprudência antiga e reiterada de que o STF apenas autoriza a extradição, mas que a decisão final é do Presidente da República, está sob ataque.

13. Impossibilidade da extradição: crime político. Mesmo que o refúgio fosse anulado, a extradição não poderia ser concedida. Cesare Battisti participou de um conjunto de ações na luta política italiana no final da década de 70. Em um primeiro julgamento foi condenado por participar de organização subversiva e de ações subversivas. O segundo julgamento, considerado “continuação” do primeiro, incluiu quatro homicídios. A sentença condenou-o a uma pena única – prisão perpétua – pelo conjunto das ações. Referiu-se a elas como “um único desenho criminoso” e fez mais de trinta referências a “subversão” da ordem política, econômica ou social. Como é possível destacar quatro fatos e tratá-los como crimes comuns quando a sentença é una, a pena é única e a decisão se refere ao conjunto da obra? O próprio STF já negou extradição de italianos por ações análogas praticadas no mesmo período – incluindo homicídio –, sendo que a decisão de uma delas é do mesmo tribunal que condenou Battisti.

14. Impossibilidade de extradição: anistia. A extradição, como se sabe, exige dupla imputação: é preciso que o fato seja crime no país requerente e no país requerido. Os fatos imputados a Cesare Battisti – ainda que se quisesse, arbitrariamente, ignorar sua natureza política –, são conexos com sua atuação política. No Brasil, a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) e a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, anistiaram os “crimes de qualquer natureza” relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, praticados entre 2 de setembro e 15 de agosto de 1979. Pois bem: a sentença italiana afirma, textualmente, que as mortes foram praticadas como justiçamento de “inimigos do proletariado” e de “agentes contra-revolucionários”. Battisti foi até condenado pela reivindicação política dos atentados, tipificada como propaganda subversiva. Como seria possível afirmar que não são crimes que tiveram motivação política? A Itália, passadas mais de três décadas, não conseguiu aprovar uma lei de anistia. Mas nós, sim. Felizmente. Se houve anistia aqui pelos mesmos fatos, não cabe extradição.

15. Impossibilidade da extradição: prescrição. A sentença proferida no segundo julgamento contra Cesare Battisti é de 13.12.1988 – por ironia, data de aniversário do Ato Institucional nº 5. A condenação foi à pena de prisão perpétua. O Ministério Público não recorreu, até porque não tinha interesse. Para ele, portanto, deu-se aí o trânsito em julgado. Em 13.12.2008, consumou-se a prescrição. O entendimento pacífico do STF é que a prisão preventiva – Battisti foi preso em 2007, para fins de extradição – não suspende o curso da prescrição. Para deixar de reconhecer a prescrição, o STF teria que alterar também essa linha jurisprudencial consolidada. Note-se que em relação a um dos homicídios – o de Torregiani – a condenação de Battisti envolve “reformatio in pejus”, já que, no primeiro julgamento coletivo, outras pessoas – e não ele – foram condenadas. Note-se, também, que em relação a esta condenação, a sentença de 1988 foi inicialmente anulada com remessa para confirmação. E foi efetivamente “confirmada”, nos termos da própria decisão italiana. Não se reabriu prazo recursal para o Ministério Público e, portanto, o termo a quo da prescrição não foi alterado.

16. Impossibilidade da extradição: violação do devido processo legal. A extradição é inviável, pois a sentença condenatória violou elementos essenciais do devido processo legal (Constituição, art. 5º, LIV e Lei nº 6.815/80, art. 77, VIII): cuidou-se de revisão criminal in pejus, na qual o peticionário restou revel perante Tribunal do Júri. Além disso, foi condenado a prisão perpétua – sem que a Itália tenha se comprometido a comutar a pena –, representado por advogado que era também patrono de outros réus implicados nos mesmos fatos, em conflito de interesses, sendo certo que o fundamento determinante da nova condenação foi depoimento obtido em programa de delação premiada.

CONCLUSÃO

17. Como qualquer pessoa do ramo poderá constatar, não são teses retóricas, sentimentais ou políticas. Pelo contrário, trata-se de argumentação jurídica, fundada no conhecimento convencional e na jurisprudência dominante. A anulação do ato de refúgio, sem procedimento próprio, do qual tivessem participado a autoridade competente e o próprio refugiado, é que não corresponde ao entendimento tradicional, tanto no direito internacional como no interno. Ainda assim, reitera-se aqui o respeito devido e merecido por quem professa crença diversa.

18. Como assinalado, a defesa não seguiu o caminho do argumento humanitário, que poderia ser assim enunciado: Cesare Battisti vive há mais de trinta anos uma vida pacata e produtiva; constituiu família e contribui decisivamente para a criação de duas filhas ainda jovens (14 e 25 anos); é uma pessoa querida e respeitada na comunidade intelectual francesa, da qual participou ativamente nos 14 anos em que esteve abrigado na França. A pergunta é natural e óbvia: em que serve à causa da humanidade mandar esse homem para cumprir prisão perpétua na Itália? Outra pergunta: que sentimentos ainda movem aquele admirável país para fazer com que, décadas depois, não tenha conseguido aprovar uma lei de anistia dos velhos adversários? Mais do que isso, como bem destacou o professor Celso Antônio Bandeira de Mello: observando a inacreditável mobilização política italiana, trinta anos depois dos fatos, é possível imaginar que eles estejam mesmo à caça de um criminoso comum? E alguém acha, verdadeiramente, que há ambiente político na Itália para que esse homem cumpra pena sem grave risco de violações à sua dignidade? Uma última pergunta: por que o Brasil deveria fazer uma ponta nesse filme, desempenhando um atípico papel de carrasco?

19. A defesa não explorou, tampouco, uma linha de argumentação política. Battisti foi militante do sonho socialista, que empolgou corações e mentes em outra fase da história da humanidade. É vítima de uma expedição punitiva fora de época. Cesare Battisti, tragicamente, não consegue se desvencilhar de sua sina de troféu simbólico de disputas políticas por onde passa. Em meio a palavras de ordem e juízos sumários, poucos são os que leram a decisão concessiva de refúgio. E menos ainda os que estão verdadeiramente interessados em sua vida, seus direitos e no terror que o espera em um cárcere político italiano.

20. Não tem sido fácil enfrentar a pretensão da Itália. Por muitas razões. Trata-se de um país fascinante, poderoso e querido pelos brasileiros. Um encantamento que não se abala pelas notícias estarrecedoras que vêm de lá, em domínios que vão da perseguição a imigrantes a usos atípicos de palácios governamentais. Nem por certas práticas políticas que espantariam os mais atentos observadores da cena política latino-americana. Como, por exemplo, a que levou à “convocação” do representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Sob ameaças e intimidações, foi obrigado a cancelar as audiências que pedira aos Ministros do STF e teve de fazer as malas e partir. Basta consultar alguém que tenha ouvido seu relato, sofrido e indignado, acerca da pressão feita pela Itália junto ao órgão (ACNUR), em Genebra.

21. Tampouco é fácil enfrentar um certo senso comum, que se colhe na opinião pública em geral – e na mídia, em particular – de que, pelas dúvidas, não devemos nos incomodar e nos indispor com a Itália por um indivíduo que nada tem a nos oferecer. Uma visão pragmática e utilitária da vida, que não leva em conta miudezas como dignidade humana e direitos fundamentais das pessoas. É nesse ambiente de indiferença que o público deixa de saber de alguns fatos que talvez fizessem diferença, como por exemplo:

a) que o Procurador-Geral da República até alguns meses atrás – o Dr. Antônio Fernando de Souza –, cujas manifestações sempre atraíram grande interesse da imprensa, pronunciou-se de maneira taxativa pela validade do refúgio e pela extinção da extradição;

b) que na data do julgamento, seu sucessor, Dr. Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento em favor do respeito ao refúgio, fim da extradição e libertação de Cesare Battisti;

c) que alguns dos mais proeminentes juristas brasileiros, pro bono e desinteressadamente, se pronunciaram em favor do refúgio e da extinção da extradição, dentre os quais os Professores José Afonso da Silva, Paulo Bonavides, Dalmo Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello;

d) que a Comissão de Assuntos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto dos Advogados do Brasil se manifestaram favoravelmente à validade do ato de refúgio e à extinção do processo de extradição;

e) que o Ministro Joaquim Barbosa não apenas proferiu voto a favor do refúgio e contra a extradição (acompanhado pelos eminentes Ministros Eros Grau e Cármen Lúcia), como se queixou de maneira veemente contra a “arrogância” do governo italiano nesse caso e contra a “insistência inapropriada” da Itália em suas gestões junto ao Supremo Tribunal Federal.

22. A perspectiva é que na retomada do julgamento, com o voto-vista do Ministro Marco Aurélio, ocorra um empate. Sinal inequívoco de que, no mínimo, há dúvida razoável. Note-se bem: com todo o peso político da Itália e com todo o peso de uma opinião pública predominantemente contrária, talvez haja empate. Só quem estava do lado da defesa pode saber o que isso significa. Pois bem: depois de se excepcionarem tantos precedentes – refúgio não é ato político, relações internacionais não são competência privativa do Executivo, prisão preventiva interrompe a prescrição –, seria o caso de se excepcionar só mais um e decidir: in dubio, pró condenação? Condenar um homem por voto de Minerva? Só para registro, a origem da expressão refere-se à decisão da deusa Atenas (Minerva), que diante do empate, absolveu Orestes, que vingara a morte de seu pai, Agamenon.

23. Estes os fatos e as teses jurídicas. A história real, documentada, que não se consegue contar. De um lado, o poder, as razões de Estado, a perseguição sem fim. De outro, um indivíduo, seus direitos fundamentais, a página virada da história. A partir daqui, cada um formará seu próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus desejos. Não tenho, nem poderia ter, a pretensão de controlar o pensamento e o sentimento alheios.

Luís Roberto Barroso