sábado, 22 de maio de 2010

VACINA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA

Caros amigos e caras amigas,

O sucesso da campanha de vacinação contra a Influenza A H1N1 (vulga gripe suína) no Brasil, não obstanteos percalços previsíveis dada a complexa estratégia e logística, inéditos, e o estrondoso fracasso ocorrido na Europa e Israel (desconheço dados de outros países do oriente médio) deveriam ser motivos para amplos estudos sociológicos e políticos. Não resta dúvida que o comportamento dessas populações frente à ameaça e à sua prevenção reflete um complexo conjunto de concepções de cada indivíduo sobre os fatos e boatos. Chama-me à atenção o volume de mensagens eletrônicas disseminadas via internet aterrorizando os leitores com conteúdos conspiratórios e paranóides. À vacina foram atribuídas acusações de mercantilismo, de planos genocidas, e outros que sugeriam que o vírus era uma criação de laboratórios interessados em lucro, e assim por diante. Não há dúvida que no território europeu - os números revelam (apenas 6% da população alemã tomou a vacina, 8% na França e 17% na Suíça) - a campanha da paranóia e da conspiração foi vitoriosa, e este fato, me é extremamente preocupante. Afinal, tantos séculos de evolução do conhecimento, da filosofia, da ciência, das instituições dos diferentes estados, instituições transnacionais (OMS, por exemplo), do estado democrático, enfim, estão desembocando no obscurantismo, na ignorância e no temor.

Um profundo artigo de John Gray (cópia abaixo retirada do site do jornal O Estado de S.Paulo, aos interessados), pensador europeu, detalha os mecanismos pelos quais a sociedade britânica perdeu a confiança no estado, em consequência de sucessivos governos que introduziram as lógicas do mercado nos serviços públicos, confundindo reforma de estado com interesses privados e sua lógica peculiar. Não se trata evidentemente de única explicação ou teoria, mas sem dúvida, pelo menos parcialmente válida para se compreender o fenômeno que aqui analiso.

Para o sucesso da campanha no Brasil, concorre a confirmação do SUS como política de estado robusta e bem sucedida, em escala continental. Por parte da população, creio que o sucesso advém de fenômeno diametralmente oposto ao ocorrido na Europa, ou seja, o brasileiro médio confia nas políticas de saúde do SUS (isto é confirmado em diversas pesquisas de opinião já realizadas). Esta confiança tem também, na minha opinião, uma vinculação com os índices de aprovação do atual governo e de seu líder, refletido no inconsciente coletivo como a personificação do estado.

No limite, este contraste de situações pode esbarrar até mesmo no conceito de civilização, pois o suposto saber "primeiromundista" traduz-se em comportamento obscurantista, e a suposta "ignorância" do brasileiro médio traduz-se no comportamento coerente e sanitarista. Se o ideal democrático viabiliza-se basicamente pelas relações de confiança e credibilidade, vejo um cenário ameaçador na Europa, se ficar claro que os resultados lá obtidos neste evento realmente resultam da desconfiança do europeu nas instituições estatais e científicas. Mas isto fica para ser estudado pelos sociólogos e cientistas políticos. Aqui, fica apenas um médico perplexo.

NELSON NISENBAUM


Abaixo, o artigo citado.

'Serviço público não é empresa'

A renovação do Estado é a grande tarefa política do nosso tempo. Sem ela, não há objetivos possíveis

John Gray*

Os britânicos não confiam mais em seu Estado. E, para a maioria deles, a razão não é tanto o autoritarismo que se instala sorrateiro - embora esse temor tenha fundamento - quanto uma desorganização endêmica. Estamos tão acostumados com serviços públicos irregulares que esquecemos que o correio costumava ser entregue antes das 9 e os clínicos gerais visitavam os lares com freqüência. As pessoas mais velhas que lutam para ter o pagamento da aposentadoria garantido acham difícil acreditar que, no passado, receber a pensão não envolvia o preenchimento de formulários longos, em jargão oficial. Ninguém mais acredita que as agências governamentais tenham informações corretas sobre os serviços que prestam ou sejam capazes de guardar nossos dados pessoais de modo organizado.

Houve um tempo em que o governo britânico funcionava. O Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) surgiu depois da Blitz (ataques aéreos executados pelo alemães entre 1940 e 1941, que mataram mais de 13 mil pessoas e deixaram 17 mil feridos em Londres) e, durante meio século, os cidadãos ficaram felizes por contar com ele. Em termos econômicos, o órgão era extraordinariamente eficiente, mas o mais importante é que pertencia a um Estado que a maioria das pessoas considerava digno de confiança. Nos países onde essa confiança não existe - como Itália e Grécia, onde ninguém gosta de confiar ao Estado nenhum assunto importante -, as pessoas dão as costas às instituições públicas e buscam as próprias soluções.

Algo parecido pode estar acontecendo na Grã-Bretanha. Quase todos nós continuamos a depender fortemente dos serviços públicos, mas talvez existam poucos que não os trocariam pelo setor privado, se pudessem pagar. Do mesmo jeito, nos beneficiamos da proteção da lei britânica. Mas agora surgem vozes para argumentar que comunidades inteiras deveriam ter a opção de abandonar o sistema legal, que é a função central do Estado.

Não é que a Grã-Bretanha caminhe para a tirania, embora a ampliação ocasional dos poderes da polícia seja alarmante. Na verdade, o governo britânico não parece mais servir a nenhum propósito coerente, e sua autoridade está desaparecendo. É uma reviravolta notável, já que, durante pelo menos 60 anos, o Estado britânico foi aceito como uma entidade fundamentalmente decente e razoavelmente eficiente. É possível remontar a mudança de atitude à tentativa de Margaret Thatcher de encolher o governo - que teve o efeito paradoxal de aumentar sua presença em nossas vidas. Somos mais intensamente regulados pelo Estado hoje do que na Grã-Bretanha pré-Thatcher. Ao mesmo tempo, o Estado é menos transparente e visivelmente menos eficaz. Qualquer um que tenha tentado marcar consulta com um médico num sábado de manhã, encontrar um dentista do NHS ou obter ajuda para decifrar uma carta de uma agência de benefícios sabe como é difícil encontrar alguém capaz de operar o sistema. No entanto, é a essa máquina defeituosa que devemos entregar registros médicos sigilosos e - no caso dos documentos de identidade - uma parte importante de nossa liberdade.

A explicação do fenômeno é complicada, mas uma razão se destaca: a crença de que é preciso introduzir o mercado em cada setor da sociedade. As políticas dos três grandes partidos britânicos se apoiaram na suposição de que ninguém - professores, médicos, agentes sociais, funcionários públicos ou militares - é confiável na função de atender o interesse público. Todos precisam ser vigiados, avaliados e mantidos sob supervisão contínua de um aparato de mercado interno e metas governamentais. Sempre que possível, os serviços devem ser terceirizados e os custos da mão-de-obra reduzidos ao mínimo com o uso da tecnologia da informação. Aprimorada pelos teóricos da Nova Direita e do Novo Trabalhismo nos anos 90, esta é a ortodoxia que nos presenteou com o atual Estado britânico - um caos impenetrável que não pode ser controlado nem por ministros nem por órgãos de fiscalização.

Os fiascos do “e-governo” não são anomalias que possam ser corrigidas por procedimentos mais rigorosos. Os bilhões desperdiçados em impraticáveis redes de computador no NHS e a repetida perda de dados em todos os setores do governo são sinais de um sistema não-funcional. O sumiço de milhões de cartas de motorista em algum lugar do Meio-Oeste americano é algo a ser esperado. Nada do que foi anunciado por Gordon Brown evitará desastres similares. Inevitavelmente, haverá mais incidentes desse tipo - muito mais.

Em certo sentido, isso representa uma oportunidade política que os partidos de oposição tratam de explorar. David Cameron e Nick Clegg compreendem a mudança de ponto de vista que o público tem do governo. Partidários de uma espécie de populismo liberal - socialmente progressista e hostil à expansão do Estado -, eles pegam carona numa onda à qual o primeiro-ministro parece decidido a resistir. Mas pode não haver muito conteúdo nesse novo estilo de política, que em nenhum momento questiona o modelo de governo baseado no mercado. Nem Cameron nem Clegg estão dispostos a estudar o fim dos mercados internos ou do sistema de metas.

Mas a suspeita que eles levantam em relação ao poder do Estado representa uma ameaça crescente a Brown. A crença na capacidade da máquina governamental de produzir bons resultados na sociedade é central na perspectiva política do primeiro-ministro. Quando esses resultados não se materializam, sua resposta é equipar a máquina com novos poderes. O fato de o sistema não ser funcional nunca é admitido. Pode ser que Brown não tenha percebido a dimensão do desafio ou seja incapaz de mudar seus métodos. Com as eleições gerais se aproximando, é difícil imaginar como essa posição no estilo de Canuto (rei que virou símbolo de grande poder) possa ser mantida face a outros exemplos de fracasso governamental. Se Brown não responder, outros em seu gabinete certamente o farão.

O Estado britânico que foi demolido como resultado do thatcherismo não pode ser reinventado. Ele pertence a um país - em alguns aspectos, mais coeso, mas também mais hierárquico - que não existe mais. Mesmo assim, um Estado eficaz continua sendo o pré-requisito mais importante de qualquer coisa que possa ser chamada de sociedade liberal. Deveríamos jogar fora a idéia de que os serviços públicos precisem sempre ser administrados como empresas - idéia que deixou esses serviços endividados e presos a metas. Seria melhor tirar definitivamente algumas funções do Estado e admitir que outras não devam ser administradas com métodos de mercado. Deveríamos estar prontos para devolver a autonomia às instituições. A devolução do poder se transformou no slogan da hora para os partidos opositores, mas envolve outras coisas além de conceder mais autonomia às escolas e hospitais para que determinem os próprios orçamentos. Significa deixá-los livres para cuidar de si, seja ou não o resultado eficiente.

Seria mais fácil para as comunidades criar escolas e administrá-las segundo os próprios valores - mesmo que esses valores não sejam os do governo ou da maioria britânica. Mas não podemos ficar sem algo como o currículo nacional, e ele tem de valer para toda escola que receba dinheiro público. É um princípio que se aplica não só às escolas. Ao contrário do que diz Rowan Williams (arcebispo da Cantuária, chefe da Igreja Anglicana), o estabelecimento de uma espécie de separatismo legal para diferentes comunidades seria um retrocesso. Tomar esse rumo seria admitir tacitamente que o Estado não tem conserto - uma iniciativa sempre perigosa.

O consenso surgido nos anos 80 encorajou a crença de que o Estado não é muito mais que uma enorme companhia de serviço público cujas funções podem, na maioria, ser terceirizadas com segurança. O resultado é o Leviatã cambaleante que temos hoje. A renovação do Estado surge como a tarefa política de nosso tempo, pois, se ela não for realizada, nenhum outro objetivo poderá ser atingido.

*John Gray é professor de Pensamento Europeu na London School of Economics. É autor, entre outros, de Al Qaeda e o que Significa Ser Moderno; e Cachorros de Palha (Record)



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segunda-feira, 17 de maio de 2010

GÁS METANO NO TRIBUNAL

A notícia publicada hoje(15/5/2010) no site do Estado de S.Paulo, dando conta da punição imposta à presidente da APEOESP por ter feito "propaganda negativa" contra José Serra (em março passado) nos remete à imagem de um poder público decompondo-se em um aterro sanitário, tendo no gás metano a representação de sua derradeira manifestação de atividade. Condena-se, em um tribunal eleitoral (TSE), uma sindicalista, por ter ofendido o governador. O fato atinge nosso intelecto de forma atordoante, até que, recupereados do impacto, sejamos tomados finalmente pelos nossos corpos amigdalóides, estruturas cerebrais que entre outras coisas despertam as mais enérgicas reações em defesa da integridade de nossas vidas. Passada a tempestade cerebral, e já com a máscara anti-metano, passamos ao exame da situação. Ora, como pode um tribunal eleitoral, condenar alguém, que não é candidato e não representa partido, por atos relativos a alguém que, oficialmente, não é candidato? A segunda pergunta (já que a primeira é fácil responder) é, quais as motivações que levam um tribunal a transpor um oceano jurídico conceitual, transformando uma causa de direito civil em causa de direito eleitoral? O fato abre um cenário inequívoco de interferência e partidarização da justiça eleitoral, que mostra suas garras institucionais manchadas pelo sangue ditatorial, exercendo sim, a tão temida censura, não à imprensa, mas ao cidadão comum e seus representantes. Censura esta, que jamais foi aplicada a qualquer veículo, pessoa, partido, representante, que tenha ofendido, nos últimos anos, a imagem do PT e a do Presidente da República, este sim, verdadeiramente vilipendiado pelas mais variadas instâncias de comunicação, sem jamais ter reclamado judicialmente. Esta é a postura de um verdadeiro democrata, que responsabiliza-se pelo seu vestal político, admitindo a discórdia, por mais ofensiva que possa ser. Estão dadas as cartas do jogo do senhor José Serra e seus partidários, confirmando o já consagrado adágio de Ciro Gomes, que reza sobre as sempre presentes baixarias quando tem Serra no jogo. Mais que a baixaria, o episódio deve servir de alerta à sociedade, que deve verificar cuidadosamente qual é o lado que quer a censura e a repressão política nesta país.

NELSON NISENBAUM