quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Patologia sistêmica

Caros leitores e leitoras,

A notícia publicada hoje, dando conta da reprovação de 68% dos examinados no "exame de ordem" do CREMESP não é exatamente uma novidade. Em todas as edições, desde a primeira tentativa em 1991, as taxas de reprovação estiveram em torno de 50% com variações pequenas para mais ou para menos. Diferentemente do exame de ordem da OAB (curiosamente decretado inconstitucional no dia de hoje por um tribunal federal) o exame do CREMESP não é requisito para a prática profissional, sendo feito de forma voluntária. Mas se partirmos do princípio lógico e provável de que os examinandos voluntários fazem parte de um segmento diferenciado dos formandos, o resultado tem um caráter mais complexo. Entretanto, para a classe médica e para a população a vida parece continuar normalmente, sendo as ocorrências de erros médicos com graves consequências muito menos frequentes do que se imaginaria em um cenário de tantas reprovações. Também não parece haver impacto na empregabilidade médica, pois esta classe apresenta o talvez mais baixo índice de desemprego. Isto mostra que entre as três realidades envolvidas, quais sejam, o aparelho formador, o aparelho verificador, e o campo de trabalho, parece haver uma patologia sistêmica, única explicação para tamanha dissonância matemática.

Na minha perspectiva de 25 anos de prática médica intensa, concursos prestados e estudo das provas aplicadas pelo CREMESP, identifico com clareza que tanto o aparelho formador como o verificador distanciam-se astronomicamente do mundo prático e das necessidades de nossa realidade. Mais que isso, parece que distâncias da mesma ordem separam os respectivos aparelhos entre si, dado o monotonamente frustrante resultado das provas. Sobre as necessidades do mundo real, bem disse o Prof. Williy Oigman (não me recordo se da UERJ ou da UFRJ) na sua tese das "30 doenças", onde defendia (acho que ainda defende) a idéia de que um médico deveria deixar o aparelho formador conhecendo muito bem apenas as 30 principais entidades nosológicas em ordem de frequência, pelo menos na área de clínica médica, deixando o restante para ser aprendido com base na demanda e interesses de cada um. Faltou dizer ainda, que do que pude observar até hoje, o mundo real do trabalho médico, principalmente no campo do SUS parece frustrar as expectativas e anseios dos profissionais médicos, na maioria dos casos.

O cenário descrito evidencia uma profunda e duradoura desarmonia entre os entes envolvidos, o que me parece ser infinitamente mais importante do que os índices e notas dos exames aplicados. Estamos diante de uma realidade tensa e desconfortável, cuja durabilidade só vem a denunciar a estagnação do pensamento nessas entidades, aparentemente hipnotizadas ou encantadas com avanços científicos e tecnológicos de baixa aplicabilidade no gigantesco contexto da saúde pública brasileira, que ainda tem, em diversas áreas, dificuldades muito mais afetas ao campo do relacionamento humano do que aos famosos rodapés de livros, tão encontradiços em provas e concursos, e que mais parecem agentes etiológicos dessa verdadeira esquizofrenia.

NELSON NISENBAUM
S.Bernardo do Campo, 16 de dezembro de 2010.

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