terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Liberdade do que mesmo?

Caros leitores e leitoras,

Reza o eruditíssimo adágio popular, "cada macaco no seu galho". O professor de filosofia Denis Lerrer Rosenfield, em seu artigo "Liberdade e doença" (veja reprodução abaixo), publicado hoje no "Estadão" e em outros sites, parece que esqueceu o que é macaco e o que é galho, perdoem-me a franqueza e perdoe-me o autor. Ao fazer uma analogia entre a medida da ANVISA que restringe a venda livre de antibióticos, condicionando-a à retenção de cópia de receita, à ideia de "liberdade de escolha", e indo mais longe, construindo uma teoria conspiratória pela qual esta medida enquadra-se nos moldes de uma ação ordenada de estado contra as privacidades e liberdades do cidadão, parece ter mesmo ultrapassado a sua própria disciplina de formação e docência. Por mais que eu possa discordar de certas atitudes da ANVISA e de seu modus operandi, tenho certo que desta vez ela acertou, mas com muito atraso. Não por que eu entenda que a superbactéria tenha sido "cria" do ambiente comunitário que normalmente abusa dos antibióticos. Tenho que esta criatura surgiu onde seria mais provável, ou seja, em ambientes de forte pressão seletiva e evolutiva, que são as UTIs espalhadas pelo mundo, onde faz suas vítimas. Mas admitir que o uso de medicamentos como antibióticos é um exercício de "livre escolha" do cidadão é mostrar despudoradamente ignorância sobre assuntos de saúde, bioética, e mesmo sobre medicina, saúde pública, e papel institucional de estado e do estado. O estado de direito democrático pressupõe a existência de instituições que regulem as ações da sociedade em todos os níveis, e o exercício da prescrição de medicamentos é e deve ser profundamente regulado pelas instituições no sentido de se proteger o coletivo, além, é claro do próprio indivíduo. Outrossim, sem risco de sofisma, tal regulamentação, entre outras, exara-se das instituições políticas que por sua vez, são mantidas e dirigidas por entes eleitos pela sociedade, que por sua vez, exerceram a sua verdadeira livre escolha, democraticamente.

NELSON NISENBAUM



Artigo - "Liberdade e doença", Denis Lerrer Rosenfield*
Em todo caso, quem compra antibióticos por própria conta se torna, evidentemente, responsável por sua ação. Algo normal para quem exerce a liberdade de escolha
Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 06/12/2010


Passou quase despercebida a última resolução da Anvisa regulando a venda de antibióticos mediante uma receita especial. Até então valia um receituário normal, que era normalmente seguido pelas farmácias, embora houvesse uma certa liberalidade na sua venda. Nada, aliás, que não pudesse ser resolvido por uma fiscalização. No entanto, em vez de fiscalizar, os órgãos de Estado se comprazem com novas regulamentações, coibindo progressivamente a liberdade do cidadão.

No caso, chama particularmente a atenção o fato de que a mencionada liberalidade na venda de antibiótico resultava também de que, muitas vezes, o médico dava orientações por telefone ou o paciente já sabia o que precisava tomar por ser a mera repetição de uma doença. Em todo caso, quem compra antibióticos por própria conta se torna, evidentemente, responsável por sua ação. Algo normal para quem exerce a liberdade de escolha.

No entanto, foi agora inventado que há uma nova "superbactéria", que teria nascido da livre compra de antibióticos por cidadãos, que exerceram uma opção própria. Nem uma palavra é dita quanto aos médicos que, por exemplo, em postos de saúde, receitam costumeiramente antibióticos, aliás, junto com cortisona, para cobrir um amplo leque de doenças possíveis. Também nada é dito sobre os ambientes hospitalares, particularmente propícios à proliferação de bactérias. Em vez disso, são as farmácias e as indústrias farmacêuticas que, pelo "lucro", estariam interessadas na livre venda de medicamentos. Sobre o aumento do número de consultas, que favorece os médicos, nada é mencionado. Interesses existem em ambos os lados.

A mensagem, contudo, é clara: a liberdade de escolha é a causa da criação de superbactérias!

Há, nesse sentido, uma longa história em curso, a história do politicamente correto, que invade cada vez mais o espaço privado dos cidadãos. As restrições quanto à liberdade de fumar entram nessa mesma linha. Não se trata, evidentemente, de defender a ideia de que os fumantes interfiram no direito alheio, dos não fumantes. Trata-se, apenas, de reservar espaços privados para cada um exercer as suas respectivas escolhas, segundo o que cada um estima como o seu próprio "bem" ou "prazer". O Estado não deveria interferir nessa esfera.

Ele, no entanto, entra diretamente nessa esfera, ditando ao cidadão o que deve fazer, como se deve comportar, como se fosse um indivíduo irresponsável e dependente desse tipo de orientação. Considerando o nexo causal entre o ato de fumar e o câncer de pulmão, o Estado parte para o banimento progressivo desse tipo de escolha. Cabem, isso sim, informações sobre os efeitos nocivos do cigarro, aliás, estampados no próprio maço. Agora, se o indivíduo, apesar dessas imagens, optar por fumar, exerce propriamente a sua escolha.

A mensagem, contudo, é clara: a liberdade de escolha é causa do câncer!

Outro caso em curso é a tentativa de coibir a publicidade de bebidas alcoólicas, em especial a cerveja. As restrições não foram ainda impostas, seja pela reação das empresas, seja pelos meios de comunicação, seja ainda pelos cidadãos. A campanha, no entanto, começa com a formação progressiva da opinião pública, para que o Estado possa entrar também nessa seara, vindo a controlar mais esse "bem", esse "prazer", na perspectiva do cidadão.

Aqui cabe mencionar um problema específico relativo à publicidade. Os órgãos estatais tendem a não fazer a distinção entre determinar e influenciar. Segundo seus burocratas, a publicidade determinaria completamente o comportamento dos indivíduos, como se estes não fossem seres capazes de discriminação própria. Seriam pessoas irresponsáveis, incapazes de qualquer apreciação racional. Precisariam ser guiadas pelo Estado, que os orientaria como agir. Não se dão - ou não se querem dar - conta de que a publicidade influencia os comportamentos, porém não os determina, não os molda. A influência deixa intacta a capacidade racional de discriminação. Amanhã, com limitações progressivas na publicidade, as próprias empresas de comunicação seriam afetadas, por perda de suas receitas, sendo esta contrabalançada com maior propaganda estatal e, por consequência, com maior dependência política dela derivada.

Para que esse caminho seja percorrido, é necessário, preliminarmente, passar duas outras mensagens: A liberdade de escolha causa alcoolismo. A liberdade de escolha é anulada pela publicidade.

Outras campanhas já estão em curso. Seus mentores são infatigáveis, verdadeiros agentes do "bem" em sua cruzada pela "saúde" dos cidadãos, embora estes não saibam exatamente do que se trata, pois são incapazes de ver com seus próprios olhos. Campanhas contra determinados alimentos contendo gordura ou sódio podem também vir a ter sua publicidade controlada e - por que também não? - amanhã a sua venda. Não se trata, reitero, de retirar do Estado o dever de informar sobre os malefícios causados por determinados alimentos e a relação entre sua ingestão e certas doenças cardiovasculares. No entanto, se as pessoas, de posse dessa informação, optarem por tais alimentos, a responsabilidade é totalmente delas.

A mensagem, contudo, é clara: a liberdade de escolha é causa de doenças cardiovasculares.

O epílogo desta história é o seguinte. Considerando que o Estado se arroga a função de controlar o que ele considera como o "bem" do cidadão, considerando que ele despreza a liberdade de escolha, considerando que as pessoas precisam de cuidados - da alma e do corpo -, torna-se necessário que ele, imbuído dessa missão, seja, consequentemente, financiado. Um novo imposto, eufemisticamente chamado de contribuição (para dar a impressão de ser voluntário), deve, então, ser criado. O desfecho é a recriação da CPMF, evidentemente, em nome da "saúde" do cidadão.

A mensagem é clara: com a nova CPMF, o Estado vai, enfim, cuidar de você. Logo, pague por esse cuidado especial! Abdique de sua liberdade de escolha!
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* Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia na UFRGS.

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