quarta-feira, 30 de março de 2011

Caros leitores e leitoras,

Amanhã entrará na pauta do STF, após quase 13 anos, ou julgamento da constitucionalidade da lei 9637/98 (governo FHC) que estabelece as Organizações Sociais de Saúde. Muitas vezes fico impressionado com o grau de desconhecimento sobre o assunto por parte da população em geral. Tais entidades, inexistentes até 1998, passaram a existir "por decreto", em uma verdadeira reedição da teoria da geração espontânea, tão cultivada na baixa idade média. Em miúdos, instituições privadas "de comprovada capacidade e eficiência" na gestão de saúde pública podem pleitear este "título" e então concorrer para a gestão do SUS em hospitais, ambulatórios, postos de saúde, e assim por diante. Em outras palavras, da noite para o dia, alguém recebe o título de competência e eficiência por fazer o que nunca fez. Afinal, receber pagamentos por serviços prestados ao SUS não significa gestão do SUS, conceito infinitamente mais amplo e complexo. Tais instituições, de acordo com a lei, regem-se pela lógica do setor privado, pautando-se pela "agilidade administrativa" e pela lógica de mercado, sepultando e cobrindo com pás de cal o conceito de serviço público e de ação de estado.

Desde sua implantação, outros princípios fundamentais do SUS também foram sepultados na cova ao lado, fundamentalmente o do controle social. Cláusula petrea do SUS, com fulcro constitucional, o controle social é o que permite a transparência e confere ao cidadão o poder (e o dever) de fiscalizar a gestão, inclusive nos aspectos financeiros, como bem frisa a lei 8142 e demais regulamentações. As OSS não prestam contas aos respectivos conselhos (municipais e estaduais) e sequer são fiscalizadas pelos tribunais de contas. Assim, verbas públicas de finalidade pública entram nas caixas pretas inexpugnáveis da burocracia privada, que por sua vez acomoda no seus intestinos os interesses dos agentes políticos de plantão, formando uma espécie de cartel que talvez só não tenha sido pensado por Al Capone.

Ainda como consequência, dezenas de milhares de carreiras públicas de servidores concursados (inclusivo este que vos escreve) tiveram e continuam tendo suas relações trabalhistas e seus direitos mais do que violados, além de outras humilhações e violências institucionais, tudo sob o silêncio dos tribunais. Poucos detiveram-se na análise das consequências de toda essa desarticulação sobre programas bem estabelecidos e executados por abnegados soldados e exércitos de nossa honrada história sanitarista.

Desde sua entrada em vigor, e da sua efetivação através dos agentes correspondentes, esta política já produziu suficiente material de análise capaz de confrontar parte razoável dos códigos civis e penais, estando este bastante bem protegido atrás dos balcões do poder e da seletividade da grande mídia, que aliada aos interesses privados, prossegue na sua cruzada infindável contra o serviço público, este, cada vez mais sofrido e limitado pela drenagem diluviana de recursos públicos em favor dos interesses privados.

Fica no ar a esperança de que o STF banhe-se nas águas da autocrítica, como suprema instância do sistema jurídico brasileiro, e que pelo menos, pelo temor de que alguém venha um dia criar por decreto as "Organizações Sociais de Justiça", analise a lei 9637 com os olhos (cegos?) voltados aos princípios mais basilares e afetos de nossa carta, diferentemente do que fez no caso da lei da "ficha limpa", onde o formal sufocou o fundamental, ressalvando-se a postura dos 5 ministros que homenagearam a cidadania.

Agora, só resta rezar.

NELSON NISENBAUM

quinta-feira, 24 de março de 2011

He really Fux

Caros leitores e leitoras,

O pleito presidencial americano que elegeu George W.Bush em 2000 foi decidido por uma única pessoa - um juiz da suprema corte americana. Naquela votação, cujo placar foi de 4 a 3, decidia-se a validade de um pleito repleto de incidentes e suspeitas de fraude. Assim, um único voto de uma única pessoa decidiu o futuro de centenas de milhões de habitantes do planeta - e talvez, do próprio planeta. O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem que a lei da ficha limpa não vale para o pleito 2010, por um placar de 6 a 5. Desta vez, o recém-empossado ministro Luiz Fux, de currículo invejável, desempatou o jogo, tornando-se portanto, moralmente responsável pela validação da eleição de algumas dezenas de eleitos que tem antecedentes civis e criminais nada abonadores, conforme constatados pelo Tribunal Superior Eleitoral. É realmente admirável a coragem de um homem que decide um jogo desta natureza. Mas se por um lado a coragem é admirável, as motivações, não tanto, na minha humilde compreensão. Sem a intenção de promover aqui um debate jurídico, pois não tenho as mais modestas credenciais para tal, pelo menos tentarei trazer outros elementos filosóficos e factuais. Afinal, o que se passa na cabeça dos ministros do TSE e dos 5 ministros do STF que votaram a favor da validade imediata? É simples. Passa-se na cabeça deles a clara compreensão de que entre os princípios constitucionais que regem a administração pública brasileira, está o da moralidade, princípio este tão demandado pela sociedade, e não de hoje. No quarto ao lado deste ambiente, habita o princípio da eficácia da lei, aplicável apenas no exercício seguinte ao da entrada em vigor da respectiva. A questão é que o princípio da moralidade entrou em vigor em 1988, portanto, 22 anos antes de 2010. A lei da ficha limpa é uma mera regulamentação tardia desse princípio. Situação análoga foi a vivida no TSE, quando decidiu pela pertinência do cargo ao partido e não ao eleito, sob acusações de abuso legislativo e interferência entre poderes. Mas o princípio já existia, simplesmente não havia sido invocado nos tribunais até então. Consultado, o TSE posicionou-se pela simples exegese, decidindo por não aguardar a produção legislativa correspondente, que apenas trataria de traduzir em miúdos o princípio já clarificado na carta magna. Assim, entre o moral e o formal, que moram na mesma casa, o ministro Fux decidiu pelo formal, consolidando mais uma vez o poder da letra fria da lei sobre aquilo que poderíamos chamar de "espírito da lei", mais do que ecoado e ressoado por toda a sociedade neste período de nossa história. Assim, a justiça se fez, cega, surda, e fria, presenteando cidadãos de péssimos antecedentes com seus respectivos mandatos, condenados por toda a sociedade. Não faltou testosterona ao ministro. Aliás, eu diria em inglês, "he really fux".

NELSON NISENBAUM

quarta-feira, 23 de março de 2011

Vá você, Boechat!

Caros leitores e leitoras,

O jornalista Ricardo Boechat brindou-nos hoje pela manhã (18/03/11) com certos comentários que não podemos deixar de considerar. Ao falar sobre as consequências ao cidadão carioca da visita do presidente americano, achincalhou o prefeito do Rio de Janeiro, terminando seus argumentos com os seguintes termos: "... mas político não leva tiro. Infelizmente. " A prosseguir, teceu duras críticas à imprensa em geral pela cobertura - que considera exagerada - dada ao prefeito de S.Paulo e sua possível mudança de partido e criação de um novo. Nas suas conclusões, disse: "Quero mais é que ele (o prefeito de S.Paulo) vá para aquele lugar que não posso falar aqui.... para onde deveriam ir, aliás, os políticos em geral..."

Em primeiro lugar, vá você, Boechat, mais parecendo no momento um BOBechat.

Em segundo lugar, se você está tão descontente com nosso país e com os nossos políticos, você pode ir embora daqui na hora que quiser, pois você vive em um país livre e democrático. Embora não exerça cargo eletivo, sou político, e juntam-se à minha categoria (de não eleitos) dezenas de milhares, que embora não empossados, lutam por um país melhor, cada um à sua forma, e exijo respeito de vossa parte, que aparentemente desistiu da democracia em favor de balear os políticos e mandá-los àquele lugar. Se você se coloca em condições de criticar tão pesadamente os seus colegas de imprensa, deveria portar-se mais dignamente frente aos teus ouvintes e leitores, mas se quer mesmo seguir no ramo da palhaçada, chame o Tiririca, ele fará melhor, e conseguiremos pelo menos rir. Mas ele está lá, a exercer o seu mandato legitimado pelo mesmo sistema que te permite se expressar à sua audiência, com as barbaridades que te colocam muito abaixo daqueles a quem você tanto vocifera.

Aliás, o teu emprego em uma empresa de comunicação de massa, existe por que políticos assim o fizeram, através de leis e instituições que permitem a existência dela, e o teu direito de falar o que quer, deriva da luta de uma geração contra a ditadura. A vida política é feita de pessoas, de grupos de interesse, e a empresa da qual você faz parte não deve ser exatamente um convento, em se tratando de grupos de interesse. E muitas vezes, ao interagir com os políticos que você tanto critica, deve ter mandado para aquele lugar os verdadeiros interesses da população.

NELSON NISENBAUM

terça-feira, 1 de março de 2011

Caros leitores e leitoras,

A recente tentativa da ANVISA de banir todos os anorexígenos das farmácias brasileiras merece mais atenção do que pode parecer em uma primeira abordagem. Formei-me médico em um ambiente político e cultural onde as decisões sobre o diagnóstico e tratamento farmacológico dos pacientes era prerrogativa da classe médica, que por sua vez, baseava-se na literatura científica, na cultura do meio, nas experiências vividas e relatadas, e no interesse de cada paciente, onde suas particularidades compunham a "cesta" de dados usados para se estabelecer os critérios de riscos e benefícios. O desenvolvimento e divulgação da medicina baseada em evidências trouxe um novo paradigma para a prática médica, ressalvando-se as faltas e excessos interpretativos que induziram muitos a erros, sendo o exemplo mais clássico o do estudo DIG (1995), que terminou por desmoralizar a digoxina como ferramenta terapêutica trazendo imensos prejuízos a quem dela necessitava. O fato foi tão grave que no congresso do American College of Cardiology de 1999, onde estive presente, realizou-se uma plenária com talvez 2000 cardiologistas de diversos países para um "realinhamento" do conhecimento sobre aquele que é um fármaco utilizado há séculos no tratamento da insuficiência cardíaca. Sim, a ciência também pode produzir mal-entendidos, além do conhecimento, e apenas o ambiente do livre pensar e o da busca incessante da verdade pode ser o norte da prática médica e da saúde pública.

O passar dos anos trouxe ao nosso contexto a ANVISA, órgão regulamentador e fiscalizador de insumos médicos, sanitários e de qualquer coisa que possa interferir na saúde dos brasileiros. Desde então, diversas intervenções desta agência, pressupostamente a serviço da segurança das atividades relacionadas à saúde, revelaram um temperamento por demais agressivo, dado que estabeleceram normas e vedações que interferem diretamente na prática médica sem o devido debate com nossas classes profissional e científica, e sem a supostamente devida coerência com outras práticas estabelecidas. Medicamentos foram retirados do mercado com critérios de segurança que não deixariam muitos dos mais vendidos medicamentos nas prateleiras das farmácias. Proibições foram impostas às farmácias de manipulação, exatamente nos tópicos onde elas tinham o melhor potencial de atendimento às necessidades personalizadas de pacientes. Dificuldades intermináveis no registro de novos medicamentos já aprovados em outros continentes retardaram a sua aplicação no paciente brasileiro. E a mais recente, a tentativa desastrada de banir todos os anorexígenos do mercado, tomada com base em "evidências científicas de que os riscos são maiores que os benefícios". A audiência pública realizada no último dia 23 de fevereiro foi marcada por um tensionamento inédito entre a classe médica e o órgão, justamente pelo fato de que a ANVISA não revelou à sociedade os tais dados de risco, aparentemente só a eles acessíveis, pois que são desconhecidas das respectivas sociedades de endocrinologia e metabolismo, entre outras. Em uma postura reveladora, a ANVISA postergou, sine die, a publicação da estrondosa resolução.

O episódio pode ser interpretado como uma confissão de burocratas, que pretendem estabelecer verdades absolutas a partir de si mesmos, governar a prática médica e apropriar-se espuriamente de um conhecimento para o qual mostram não ter a devida e necessária competência. A prática médica não pode ser confundida com ciência médica. Esta última, é a instância produtora de conhecimentos; a primeira, utiliza os conhecimentos na prática clínica, que só pode ter como pretensão a produção de uma verdade individual e inalienável, que é a do paciente. Os riscos calculados em condições controladas por certos estudos científicos muitas vezes não refletem a situação do indivíduo. Ainda que assim fosse, chegaríamos então ao ponto fundamental deste texto: Pode a ANVISA interferir em caráter absoluto sobre o desejo dos pacientes, sobre a decisão de seus médicos, confrontando um conhecimento acumulado em décadas de experiência? A responder sim, estaremos transferindo e um órgão não representativo da sociedade a capacidade de usurpar de suas funções precípuas, ao invadir o território legislativo, científico, o da prática médica, e o da intimidade da pessoa humana. O debate aqui colocado é imensamente maior que o aparente, estamos tratando sim de direitos fundamentais. Uma vez ultrapassado este limite, se a sociedade assim permitir, a procuração estará passada aos burocratas, permitindo-os a regular virtualmente qualquer aspecto da vida e suas relações com a saúde. Sairemos do campo do debate científico e do amadurecimento democrático para retroceder ao paternalismo autoritário ou ao mundo obscuro dos dogmas petrificados. Vamos ter que escolher.

NELSON NISENBAUM